sexta-feira, 24 de junho de 2011

Problemas técnicos e de "vaguidão"

Além de sérias questões tecnológicas, tais como a dificuldade de um acesso decente à internet ou mesmo um lugar próprio em que se possa fazer um trabalho tranquilo... além disso, tudo que tenho escrito - e não publicado - é por uma questão de "consciência exilada": nem sempre devo dizer o que penso. Muito embora, sob as poucas palavras que deixo aqui, o esteja fazendo agora.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Visita à UNEAS - União Nacional de Artistas e Escritores de São Tomé e Príncipe

Em novembro de 2009 – eu havia acabado de chegar em São Tomé e Príncipe (chegara em setembro de 2009) –, fui à UNEAS visitar a poetisa Alda Espírito Santo. Mas, principalmente, fui ouvi-la. Antes de partir do Brasil para as terras de cá, havia lido, numa coletânea, poucos poemas de poucos são-tomenses, quais sejam, Caetano Costa Alegre (1864 1890), –  um estranho salto se fez sobre os textos de Marcelo da Veiga (1892-1976), poeta nascido na Ilha do Príncipe, que vim a conhecer aqui, e que é considerado por alguns críticos o primeiro poeta “negrista” da literatura africana de língua portuguesa –, Francisco José Tenreiro (1921-1963), Manuela Margarido (1926-2007), Tomás Medeiros (1931-), Alda Espírito Santo (1926-2010) e Conceição Lima (1962-) (In APA, Livia et alii. Poesia africana de língua portuguesa. Antologia. Rio de Janeiro: Lacerda, 2003).
Figuravam ali, vivos, os textos de Alda Espírito Santo. Para mim, que estava iniciando a vida em ST&P e moldando os aspectos de minha missão – que é a primeira missão brasileira (MRE do Brasil/DPLP) dessa natureza  no Instituto Superior Politécnico de ST&P –, aquele dia seria muito importante. Era dia de ouvir a poetisa. A poetisa mais querida dos de cá, a mais famosa, a mais participativa nos movimentos pela independência de São Tomé e Príncipe.
Alda Espírito Santo veio apoiada nos braços de um rapaz que trabalhava com ela na UNEAS. Já muito fraca, assentou-se à mesa comigo e com a representante da Embaixada do Brasil, e falou. Falou, sim, falou um pouco da sua vida e da sua luta. Falou do esquecimento, por parte das autoridades locais, daquela casa que sedia a UNEAS (até hoje), falou do concurso anual de paços, da falta de verbas para o mesmo, do carinho que tinha pelos paços, que eram espalhados pela cidade numa determinada época do ano. Mostrou-nos publicações da UNEAS, mostrou-nos seus livrinhos. Mostrou-nos a casa velha. E a bibliotecazinha, que era mesmo naquela sala em que estávamos, ternamente simples, como o foram todos os minutos que passamos ali.
Despedimo-nos, e lembrei-me, já fora da casa, de que eu, que fora até lá cheia de perguntas, de dúvidas, de teorias, eu não dissera uma palavra sequer. O que me tomava era um sentimento de tristeza, de abandono, de frustração. O que me invadia era o passado da mulher guerreira esquecido entre as paredes velhas daquela casa.
Hoje, lembro-me desse encontro com alguma ternura e com uma ponta de frustração. No meu imaginário – ingênuo – um poeta é uma pessoa que deve ser tratada como um pequeno tesouro, ainda mais no caso de Alda, que estava ali, viva, concreta. Construindo pequenos paços...
Já em 2011, recebi de presente de um amigo a primeira edição de É nosso o solo sagrado da terra, de Alda Espírito Santo, cujo subtítulo é “Poesia de protesto e luta”. A edição é de 1978 e traz, na abertura, o Hino de São Tomé e Príncipe, composto por ela, e um prefácio extenso, em que a própria poetisa justifica e explica os poemas que foram selecionados para aquela edição. Admito que fiquei surpresa ao ler o prefácio, pois ele instaura em mim um paradoxo, se comparado à imagem de abandono que presenciei na UNEAS, 31 anos depois de o livro ter sido publicado (pelas Edições Ulmeiro, na Coleção Vozes da Ilha, em Lisboa). Um paradoxo pois, se as palavras não mentem, a mulher que “fala” no prefácio não vem fraca e nem tampouco apoiada em qualquer coisa que seja. A mulher que ali “fala”, fala forte e não pede sustentação para uma casa: ela é os pilares da casa.
Talvez eu esteja repetindo o que muitos já disseram. Acredito que sim, que me alongo e que repito o já dito. Contudo, é por acreditar que, de fato, as escritas servem-se de um compromisso ético e de dignidade, é por acreditar nelas e me comprometer com elas que gloso pela milésima vez o mote da UNEAS. E exponho a minha frustração daquele dia da visita.
No entanto, as escritas se mantêm vivas, como já dizia o sábio ditado latino: verba volat, scripta manent. Sim, a escrita se mantém, permanece, e é documento, no caso de Alda Espírito Santo, de luta e de protesto.
Eu não me arriscarei a uma aventura pela questão literária, pelas questões inesgotáveis acerca do que é literatura, do que é poesia, ou o que faz com que este ou aquele texto seja de fato literário e outro não. Este não é o caso de agora. O caso é que me imbuí de tamanha vontade de “falar”, tocada pela ternura-dura das palavras (certeiras) do prefácio de É nosso o solo sagrado da terra, que deixei de lado as teorias da literatura para falar de algo mais subjetivo, que foi a recepção do tal prefácio. Para falar do amor que tenho pelas letras, pelas palavras, e da admiração que tenho pelas pessoas que lutam com palavras (muito embora saibamos que “lutar com palavras é a luta mais vã”[1], neste e noutro sentido). Para expor a minha indignação que respeita àquela Casa que visitei em 2009. E que continua igual, dois anos mais abandonada, sem a sua viga de sustentação que era Alda. O que valorizo, agora, é a mulher Alda Espírito Santo, cidadã são-tomense.
Assisti há pouco tempo na Biblioteca Nacional a uma homenagem ao octogésimo quinto aniversário da poetisa. A homenagem é merecida (sempre). Mas, quanto aos desejos da homenageada, não os tenho reconhecido nas oportunidades de discussão com alunos, por exemplo, transformados em atos. As palavras de Alda reclamam o resguardo de uma “identidade cultural, compromisso com a luta dos povos oprimidos no mundo, testemunho e militância no continente africano, luta e ação mobilizante na epopéia sangrenta de cinco séculos de estagnação...”[2] Isso tudo pode parecer, a priori, muito ultrapassado. Como falar de luta de povos oprimidos em uma país independente? Como falar de opressão num país de pessoas livres? Creio que Alda estivesse nos exortando a mais que isso: ao compromisso de manter acesos os valores pelos quais ela lutava: liberdade, dignidade, movimento. Ao compromisso de validar o possessivo do título de seu livro: nosso. Ela clama pelo movimento, ao invés da estagnação. Tudo isso pode continuar parecendo ultrapassado.
A manutenção das raízes de sua terra eram-lhe preocupantes: firmá-las, fixá-las era, para Alda, um dever. E ela cria que, mesmo com as dimensões reduzidas de seu país, era possível construir e manter uma nação livre, democrática.
Sei que é complicado para mim, uma estrangeira, falar do Outro. Mas é com o olhar muito terno e não menos crítico que escrevo/falo sobre São Tomé. E falo também como uma pessoa que escolheu viver aqui. No Brasil, entramos há alguns anos numa fase de valorização da nossa cultura, da nossa História e das nossas artes, que é dos elementos mais evidentes que nos sustentam e nos fazem fortes. Eu desejaria ver aqui a mesma valorização que “sinto” lá. Como professora, como estudante das artes literárias, como cidadã, comprometida com o mundo em que vivo (e meu mundo não é apenas o Brasil), espero presenciar aqui, nos próximos meses em que estarei em missão, esta valorização, o desejo dos cidadãos de (a)firmarem suas raízes nesta pequena ilha africana, e de reconhecer, em São Tomé e Príncipe, um país terno e grande, a despeito dos limites do mar, ciente de seus méritos e de suas idiossincrasias, ético para lidar com o que os faz diferentes e com o que os aproxima do resto do mundo.
No caso do Brasil, a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, aprendemos a “olhar” e a “comer”[3] as diferenças que havia entre nosso país e a Europa, diferenciamo-nos pela língua (falamos brasileiro), “coadjuvamos”[4] com os movimentos vanguardistas e modernistas europeus, enfim,  criamos (e alimentamos) um povo ciente de suas raízes mestiças, absolutamente novo no mundo.
A grandeza de que falo só é possível, ao meu olhar estrangeiro, se se dá à manifestação cultural o valor que lhe é de direito. A valorização, para mim, passa necessariamente pela base da pirâmide social: a sala de aula, as aulas de literatura do curso de Letras do ISP, e cresce pelas cabeças que, sem demagogia, representam espíritos “vestidos” de sinceridade e de dignidade. E, por que não, de orgulho?
Dessas cabeças, há algumas aqui. Mas julgo que seja necessário lembrar-lhes sempre de “vencer o medo da escravidão/e a escravidão do medo”.
Conceição Lima, poetisa são-tomense, em alguns fragmentos poéticos colhidos em livro que já citei no início do texto, canta:

Após o ardor da conquista
não caíram manás sobre os nossos campos

E na dura travessia do deserto
aprendemos que a terra prometida é aqui.

Ainda aqui e sempre aqui.
Duas ilhas a desbravar.
O padrão a ser erguido
pela nudez insepulta dos nossos punhos.

Emergiremos do canto
como do chão emerge o milho jovem
e nus, inteiros recuperaremos
a transparência do tempo inicial
Puros reabitaremos o poema e a claridade
para que a palavra amanheça e o sonho não se perca.
(Os grifos são meus)

Se já posso me inserir no contexto santomense, por vivê-lo de forma intensa e por estar verdadeiramente devotada à minha missão, digo: reabitemos, pois, a Palavra que nos pertence. Ergamos o padrão. Comecemos pela UNEAS,  re-habitando as paredes ora tristes, habitando a casa de ideias, desabandonando-a. Eu desejo ver  esta pátria “caminhando na dianteira”[5]. E uno as minhas mãos às “mãos milenárias” de Alda Espírito Santo.

(07 de junho de 2011)


[1] Alusão à poesia de Carlos Drummond de Andrade “O lutador”. Pode se lida em suas Obras completas.
[2] ESPÍRITO SANTO, Alda. É nosso o solo sagrado da terra. Lisboa: Ulmeiro, 1978. p.10.
[3] Faço alusão ao Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, datado de maio de 1928.
[4] “Antigamente imitávamos a literatura francesa com uma distância de mais ou menos duas gerações. Agora estamos com o presente da literatura universal. Não é mais seguir. É ir junto. Não é imitar. É coadjuvar.” (Mário de Andrade, no prefácio de O homem e a morte, de Menotti del Picchia)
[5] Idem. Ibidem. p. 23. Alusão à poesia.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Uma ressalva acerca do termo "santomensidade"

No trabalho que apresentei no Seminário Internacional Francisco José Tenreiro - seminário organizado pela professora da Universidade de Lisboa, a são-tomense Inocência Mata, e que aconteceu na Embaixada do Brasil em São Tomé e Príncipe - usei o termo santomensidade ao falar da poesia de Conceição Lima. O termo foi cunhado pela professora Inocência Mata, em sua dissertação de mestrado, de 1993, "Emergência e existência de uma literatura: o caso santomense", e não, como afirmei enganadamente em nota, pelo Sr. Francisco Costa Alegre, no livro "Santomensidade".

domingo, 5 de junho de 2011

Sob a pele da palavra.

Comunicação apresentada no Seminário Internacional Francisco José Tenreiro, em São Tomé e Príncipe, em janeiro de 2011.

Agradeço à Simone Caputo Gomes e ao Edimilson Pereira pela leitura prévia do texto, leitura cuidada e crítica (algumas perguntas que recebi de vocês foram reproduzidas no texto...)
E agradeço ao Leandro Vieira, Primeiro Secretário da Embaixada do Brasil naquela altura, pela apresentação do trabalho no Seminário, visto que não pude ser eu a fazê-la, pois estava afastada de minhas funções, por motivos de saúde, no Brasil.

*


SOB A PELE DA PALAVRA, AS ILHAS. Uma leitura da poesia de Conceição Lima*

Por Naduska Mário Palmeira



Para onde devem voar os pássaros
depois do último céu?
(Mahmoud Darwish, apud Homi Bhabha,
in O local da cultura)

Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas,
como reconheceram os gregos, a fronteira é o
ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente.
(Martim Heidegger)


A poeta Conceição Lima realiza, em sua obra, uma trajetória inovadora para o contexto das artes literárias de São Tomé e Príncipe. Busca, em sua poética, projetar a terra sonhada de São Tomé e Príncipe como buscasse re-encontrar a própria Casa. Ou defrontar-se com a sua própria identidade. Essa trajetória pode ser fruto de uma moldura histórica – que impulsionou os intelectuais das ex-colônias ao exílio (ainda que não tenha sido “forçado”, no caso da poeta) – e, de uma perspectiva ontológica – que impõe ao sujeito o paradoxo de permanecer e, ao mesmo tempo, partir de sua terra originária.
Assim, instala-se o paradoxo com o qual a poeta vai lidar em seus textos: voltar e assim estar na casa em que nasceu e, por outro lado, tentar recriá-la a partir da memória da terra construída no “exílio”. Conceição Lima procura escrever uma narrativa da nação, como, segundo Homi Bhabha*, “uma forma de afiliação social e textual” à “nationness”.
O tom de seus poemas, ao narrar a sua própria trajetória sentimental e íntima pelas Ilhas – e longe delas –  é nostálgico, como se se colocassem, a poeta e o eu-lírico, de frente para as ilhas, mas em alto mar, vislumbrando a terra,  numa posição de confrontamento e reflexão. E a “sensação” que se pode ter ao ler Conceição Lima é a de que nós, leitores, pairamos sobre as suas palavras, tal como as palavras pairam sobre as ilhas, a fim de conhecermos sua terra e penetrarmos suas entranhas, suas “formas”, sejam elas concretas ou abstratas, reais ou projetadas no corpo do poema, como se pode ler em:


Aqui projectei minha casa:

(...) Aqui
sonho ainda o pilar –
uma rectidão de torre, de altar.
(A casa, grifo meu)


A fim de empreender uma viagem pelo interior desta poética e buscar pistas acerca das veredas identitárias e de reconstrução da terra natal ou retorno ao lugar originário (ou útero) que Conceição Lima percorre, optei por analisar, pontualmente, os poemas da obra O útero da casa, já que em A dolorosa raiz do micondó o sentido de identidade e de busca da africanidade – e não apenas da santomensidade – amplia-se a uma busca mais coletiva que íntima, mais africana que santomense*. Contudo, ainda assim, Lima anuncia um percurso de descoberta/conhecimento do seu próprio povo em O útero da casa. Esse conhecimento depende, no entanto, “de uma substância muito mais fundamental que está ela própria sendo continuamente renovada”, como afirma Homi Bhabha, citando Franz Fanon ao se colocar contra “a forma de historicismo nacionalista que admite haver um momento em que as temporalidades diferenciais de histórias culturais se fundem em um presente imediatamente legível.”*
As palavras de Conceição Lima, ao rememorar o passado, como mencionei a priori, parecem pairar sobre a paisagem da sua casa, física, e transformá-la numa paisagem metafísica, sonhada, em um contínuo movimento entre escrever o passado e conhecer-se no presente. Buscam aquela “substância fundamental” que arranca a narrativa histórica do espaço ao qual habitualmente pertencia, os governos, as elites econômicas. Contudo, sem a ênfase panfletária de alguns poetas africanos que levantaram a bandeira da independência e incentivaram a luta, na pele de seus textos, pela consolidação de uma república independente da metrópole – outra tendência da arte poética produzida em São Tomé e Príncipe após a independência, conquistada em 1975 – Lima adota a postura de alguém que apenas espera, a poeta “rasga sobre o pranto” (e firma na ilha) “o grito da imanência”:

Em ti me projecto
para decifrar do sonho
o começo e a consequência
Em ti me firmo
para rasgar sobre o pranto
o grito da imanência.
(Ilha)

O que se lê, como afirma Inocência Mata no ensaio A poesia de Conceição Lima: o sentido da história das ruminações afectivas é “uma dinâmica temporal em dois movimentos: o passado e o presente em atividade rememorativa (...) pelos trilhos de uma linguagem testamentária” *. Testamentária e afetiva, rememorativa e histórica, Lima traça novo percurso nas artes literárias de São Tomé e Príncipe, um percurso que possui uma força narrativa e psicológica, e, parafraseando Bhabha*, uma poética em que a ambivalência da “nação”, ou do sentimento íntimo em relação à Casa, surge como estratégia narrativa.
Na maioria dos poemas de O útero da casa o que se percebe é um desejo (personificado, algumas vezes, em homens ou ossos de homens mortos) que paira sobre a paisagem insular e decifra-se sob a pela delgada das palavras poéticas, que dão vida à casa – muito embora uma casa diáfana, obscura, por vezes –, dão vida, pois, ao início de tudo, de toda a vida e da esperança: ao útero.

De novo as nuvens
cobrirão o pico
e os homens marcharão sobre a planície.
(Segunda revolta de Amador)


Observa-se que desejo de liberdade de Amador não se concretiza e o eu-lírico se defronta (ou poderia dizer confronta-se?) com a utopia desfeita, a verdade da juventude, unida à inocência e ao sonho de que tudo se pode realizar quando se é jovem:

Diz que éramos inocentes, invencíveis
e adormecíamos sem remorsos sem presságios
(...)

Oh, sim! Éramos jovens, terríveis
mas aqui – nunca o esqueças – tudo aconteceu
nos mastros do poema.
(1975)

Assim, a verdade do passado, bem como os sonhos dos jovens, destroçam-se e se tornam nostálgicos (“aqui tudo aconteceu / nos mastros do poema), objeto de elaboração poética – e íntima. O desejo não satisfeito de uma nação liberta, aos moldes das aspirações do eu-lírico, que atua como uma voz para a qual convergem os sonhos do povo, é uma verdade que se coloca diante do mesmo, nua e dolorosa, como se pode observar em Sabemos agora, poema em cuja essência vê-se expressa a condição presente da terra e os resultados não satisfeitos das lutas dos homens sonhadores de outrora (“diz que éramos inocentes, terríveis”), certeza marcada pelo verbo saber no presente do indicativo, na primeira pessoa do plural:

Sabemos agora que a Praça é minúscula
A extensão da nossa espera
Nunca coube em tais limites.
(Sabemos agora, grifo meu)


Sobre a verdade, Clarice Lispector tece uma reflexão em A paixão segundo GH* que considero pertinente mencionar e comparar à entrega aflita e amorosa que se pode perceber no conjunto de poemas que compõe O útero da casa:

Por enquanto estou inventando a tua presença, como um dia não saberei me arriscar a morrer sozinha, morrer é do maior risco, não saberei passar para a morte e por o primeiro pé na primeira ausência de mim. (...)
Mas é que a verdade nunca me fez sentido. A verdade não me faz sentido! É por isso que eu a temia e a temo. Desamparada eu te entrego tudo – para que faças disso uma coisa alegre. Por te falar eu te assustei e te perderei? mas se eu não falar eu me perderei, e por me perder eu te perderia.
(Grifos meus)

Clarice Lispector (1925-1977) é escritora brasileira que, no campo da prosa, apresenta suas indagações e suas dúvidas acerca do Ser. A relação entre Lima e Lispector não ocorre, pois, no campo do gênero. Para a poeta santomense, a diferença está na maneira de apresentar as indagações e dúvidas, o que lhe permite ultrapassar as restrições puramente ideológicas da poesia engajada, tão conhecida no contexto das lutas anticoloniais na África. Assim, Lima estrutura um ambiente lírico, mas não menos crítico; idealizado, mas não menos atento às tramas da realidade política do país, como se pode observar em Roça, poema em que dá voz aos contratados das roças e questiona, pela boca do eu-lírico:

Perguntam os mortos:

Porque brotam raízes dos nossos pés?

Porque teimam em sangrar
em nossas unhas
as pétalas dos cacaueiros?

que reino foi esse que plantámos?

Num contexto diferente, Clarice Lispector empreende, a partir de GH, uma viagem interior sobre o amor, as relações de afeto e todas as consequências de estar em uma relação amorosa. Analogamente, o eu-lírico de Conceição Lima olha para dentro de si mesmo e encontra a poeta que busca re-encontrar sua identidade na terra que a gerou. Ele o faz com um status de quem reflete acerca de uma relação amorosa, representando a Mátria como um corpo a habitar:

(...)
Um degrau de basalto emerge do mar
e na dança das trepadeiras reabito
o teu corpo
templo mátrio
meu castelo melancólico de tábuas rijas e de prumos.
(Mátria)

O maior risco, como afirma GH, é o de morrer sozinha, não conseguir reconhecer-se e perder-se. A questão do pertencimento, que exigiria um tempo maior de discussão, coloca-se na poética de O útero da casa, e, por saber que a busca do pertencimento oblitera os caminhos de construção identitária, Conceição Lima negocia os limites do seu “ser santomense”, nostálgico, com a sua própria experiência diaspórica (pois viveu em Londres), o que a faz (parafraseando Zygmunt Bauman ao discutir questões acerca de cultura, pertencimento e construção identitária) ter um olhar privilegiado acerca de sua terra, entre a intimidade e a distância. Contudo, Conceição Lima constrói o seu castelo com tábuas rijas, firmes, embora melancólico, e não apenas busca “pertencer” à terra em que nasceu, mas compreendê-la, desvendá-la e “reabitá-la”. Como afirma Bauman em entrevista a Benedetto Vecchi,


(...) o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e (tornamo-nos conscientes) de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade”. Em outras palavras, a ideia de “ter uma identidade” não vai ocorrer às pessoas enquanto o “pertencimento”, continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa. (Identidade, meus grifos)

Por isso, por não fazer parte de um grupo restrito de pessoas que estão fora de um contato íntimo com a terra, Conceição Lima é a poeta que está mais próxima de, ao mesmo tempo em que, aludindo ao que propõe Inocência Mata no prefácio a O útero da casa, constrói o relato de uma geração, convoca e re-elabora, em alguns poemas, uma possibilidade de reconstrução identitária, coletiva e individual santomense através de lugares metonímicos como a terra e a casa:

(...)
Quando à casa regressar
A pátria fugitiva

Da trouxa dos dias guardarei ainda
O murmúrio das preces e a vigília
A obstinada memória das águas eternas.
(Poema, grifos meus)


Ou, como em Afroinsularidade, de maneira mais ampla, o eu-lírico pensa em sua identidade amalgamada às ilhas e ao continente, e o contar dessa história individual não deixa de envolver todo “o árduo contar da própria coletividade”:

Às vezes penso em suas lívidas ossadas
seus cabelos podres na orla do mar
Aqui, neste fragmento de África
onde, virado para o Sul,
um verbo amanhece alto
como uma dolorosa bandeira.

Desamparado ou por vezes para “exorcizar demônios”*, no útero da casa o eu-lírico se sente aconchegado e entrega-se, não sem uma certa nostalgia e alguma dor; vislumbra, em constante busca, um caminho que seja transformado em prazer (“coisa alegre”), retomando a alusão ao desejo da amante G.H., personagem clariceana. Entrega-se à Casa, pois. E ampliando-a, eliminando qualquer barreira:


(...)
Enorme era a janela e de vidro
que a sala exigia um certo ar de praça.
o quintal era plano, redondo
sem trancas nos caminhos.
(A casa, grifos meus)

Complementa Inocência Mata:

(...) subsiste (a par de um olhar de apetência epopeica) outra cadência mais intimista, em que se mesclam vozes de felicidade que intentam reverter a apetência para a nostalgia regressiva, e, em que perpassam paisagens visando neutralizar a nostalgia do tempo de ilusão. (...)
Pela rememoração ou reinvenção de lugares felizes são convocados valores que se pretendem perenes e condizentes com o bem-estar societário.

Desta maneira, o olhar para a nação e a tentativa de reinventar lugares, neutralizar a nostalgia e de , enfim, recontar a história a partir de desejos e memórias afetivas e traços que confluem para um olhar feminino, transforma a perda temporária da Casa numa linguagem metafórica, “que transporta o significado de casa e de sentir-se em casa (...) através daquelas distâncias e diferenças culturais que transpõem a comunidade imaginada do povo-nação”.* Ademais, o eu lírico quer-se lúcido caso consiga transportar-se para o útero, para a casa ou Mátria:

Quero-me desperta
se ao útero da casa retorno
para tactear a diurna penumbra
das paredes
na pele dos dedos reviver a maciez
dos dias subterrâneos
os momentos idos

Creio nesta amplidão
de praia talvez ou de deserto
creio na insónia que verga
este teatro de sombras

E se me interrogo
é para te explicar...

Para além de uma tentativa de pensar a identidade nacional, desejo levantar uma tese e algumas hipóteses – que não serão devidamente desenvolvidas agora, porque demandam pesquisa mais cuidadosa – a fim de concluir: pode-se afirmar, nessa obra, o objetivo de construção da nação, ou, novamente, pensar a identidade sob uma nova perspectiva, a do feminino.
Os livros de Conceição Lima aludem a este aspecto, pois seus títulos evocam explicitamente o mundo que a cultura patriarcal tem estabelecido  para as mulheres: casa, útero, dor (parto) etc. Por hipótese, haveria na obra da poeta a possibilidade de mudar o ponto de observação da identidade santomense, pois que possui um olhar mais sensível e íntimo do que descritivo sobre sua Casa? Cobra-se, indiretamente, neste caso, uma escuta à voz das mulheres, mesmo que Lima tenha sido precedida por outras “vozes” femininas como as de Alda Espírito Santo e Manuela Margarido. Critica-se, portanto, de maneira sutil, a preponderância do olhar masculino na experiência social e estética das ilhas?
Homi Bhabha, ao analisar os escritos políticos de Julia Kristeva, sugere que

...ela parece argumentar que a “singularidade” da mulher – sua representação como fragmentação e pulsão – produz uma dissidência e um distanciamento dentro do próprio vínculo simbólico que mistifica “a comunidade da linguagem como um instrumento universal e unificador, que totaliza e iguala”.*


Acredito que certa singularidade, como por exemplo, na escolha do léxico, da obra de Conceição Lima represente um acréscimo – para alterar o “rumo” do olhar – à cultura da nação santomense, e que ela desmistifica o discurso histórico nacional, transformando a nação, a cultura ou a identidade em sujeitos de um discurso que parte do ponto de vista da mulher e passa a ser, aludindo a Kristeva, um “objeto de identificação psíquica”, já que a poeta mergulha em sua nação-Casa, em suas rememorações, partindo da hipótese de um retorno ao útero. Sua poética poderia ser encarada como a elaboração da dificuldade (ou da impossibilidade) de renascer na Casa, para tatear a “diurna penumbra / das paredes / na pele dos dedos reviver a maciez / dos dias subterrâneos os momentos idos”.

E quando te perguntarem
responderás que aqui nada aconteceu
Senão na euforia do poema.
(1975, grifos meus)




Parece-me que algo novo está acontecendo na literatura santomense, que nova(s) voz(es) se levanta(m), brotadas do solo de vozes que antes se fizeram ouvir – como a de Marcelo da Veiga, Francisco José Tenreiro, Manuela Margarido, Alda Espírito Santo –, abrindo as veredas para uma poeta como Conceição Lima fazer literatura.




* BHABHA, Homi. “DissemiNação. O tempo, a narrativa e as imagens da nação moderna.” In O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998. Pp. 198-238.
* Adoto os termos santomense, e não são-tomense, e santomensidade em virtude de minha leitura e adoção do termo na obra de Francisco Costa Alegre, intitulada Santomensidade.
* BHABHA, Homi K. “De margens e minorias”. Idem. p. 215.
* MATA, Inocência. “A poesia de Conceição Lima: o sentido da história das ruminações afetivas”. In Polifonias insulares. Cultura e literatura de São Tomé e Príncipe. Colibri: Lisboa, 2010. Pp. 201-216.
*            BHABHA, Homi. Idem, ibidem. pp. 198-238.
*            LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p.25
*            Massaud Moisés: “As palavras do poema constituem uma espécie de exorcismo do demônio”. Apud MATA, Inocência. Polifonias insulares. p. 201.
*            BHABHA, Homi K. Idem, ibidem. p. 199.
*            KRISTEVA, Julia. “Women’s time”, p. 210. Apud BHABHA, Homi K. Idem. p. 210.

Vale anotar. E uma errata.

O que vai no som: “Clube da esquina”, 1 e 2. (Milton Nascimento e Lô Borges, das Minas Gerais)
O que vai na cabeceira: “Disgrace”, de Coetzee. (Da África do Sul)
O que vai na escrivaninha: “Camaradas, clientes e compadres”, do Gerhard Seibert. (Antropólogo alemão, residente em Portugal)
Na fila (ou concomitantemente): “Nós matámos o Cão-Tinhoso”, de Luis Bernardo Honwana. (De Moçambique)
O que é digno de nota: “Chiquinho”, de Baltasar Lopes. (De Cabo Verde)


O que sempre está nas mãos: a “Obra poética” de Drummond e de Pessoa (alimentos diários).

Errata: a obra a que me refiro no email que enviei para um grupo é de José Cardoso Pires, "Lisboa, livro de bordo", e não de Saramago.

Sobre a autora (2 e fim)

Sete anos de Rio, e surgiu o desejo de vir para a África. São Tomé e Príncipe. São Tomé. Hoje, posso adiantar que estou num empreendimento – solitário* – de compreender as escritas produzidas aqui em ST e de resgatar o que nelas há de possível para um trabalho científico.

Para além disso, muito embora eu ainda não esteja vinculada a algum programa de estudos em uma universidade, sinto-me perfeitamente autorizada a escrever ensaios, a comentar leituras, a criticar críticas ou “atar-me” a algum domínio/linha filosófica, antropológica, etnológica, historicista, pós-modernista ou pós-colonial (ou, para usar palavras de Ahmad, alguma linhagem do presente) dos estudos de literatura. Mesmo estando (n)à margem dos intelectuais das letras, neste caso, mais especificamente, estudantes de África, vivo (num sentido muito amplo) São Tomé e Príncipe. E por vivê-lo, estrangeiramente, femininamente, literariamente, incomoda-me não ter ainda escrito qualquer coisa sobre tal experiência.

É bem verdade que, antes de publicar qualquer texto, ainda que escondido num canto da internet, num blog novo e desconhecido, leio, releio, analiso a pertinência do que digo, verifico cada informação que insiro no texto, e calculo os impactos daquilo que será publicado. Não posso jamais me esquecer de que tenho um compromisso ético com a minha profissão, e de que vivo num país em que a “diferença” pode contar muito contra um estrangeiro (no meu caso, mulher, branca – mestiça, como todos sabem que são os brasileiros –, brasileira. Sim, brasileira: sou, muitas vezes vista como uma mulher “diferente”, marcada pela visão equivocada que se tem das mulheres do Brasil, e alvo de preconceito explícito – como ser mandada de volta para casa no primeiro dia de aula devido a um vestido sem mangas, muito embora comprido, largo, absolutamente decente. Isso não ocorreu com outras mulheres, igualmente estrangeiras; a regra dos ombros tapados valeu apenas para mim).

Retomo o objeto primeiro desta investida num blog.
Tomando emprestado o subtítulo de uma crônica de Mia Couto (em Pensatempos, "O sertão brasileiro na savana moçambicana"), "as águas do meu princípio" nas letras santomenses passam, necessariamente, por Conceição Lima. Tenho buscado material para "publicar", com segurança, qualquer coisa que, para além dessa poetisa e outros poucos textos, se possa assinalar de “literariamente legível” nas letras santomenses (e falo de hoje, 2011, antes que se julgue que me esqueço de Francisco José Tenreiro, posta de lado a polêmica questão/cisão da “nacionalidade” do poeta).









Todavia, isso são mesmo linhas para outras páginas.


*O que quer dizer que não estou vinculada a projeto acadêmico, em qualquer universidade. A iniciativa é puro idealismo.

Sobre a autora (1)

Pela segunda vez, quando vim para cá, despedi-me de casa, só que, agora, parti para mais longe, para descobrir coisas que estavam tão perto de mim. Foi devido à minha experiência aqui em São Tomé que me saltou da cabeça, na tarde do dia 04 de Junho de 2011, a ideia de escrever outro blog (digo “outro” pois já me aventurei por mais um, do qual falarei mais adiante ou noutro texto).
Entre aventuras boas e desgostos, contatos pessoais e literários (ou “escritas”), entre brasileiros e portugueses, santomenses e pessoas das mais diversas nacionalidades; entre grandes aprendizados e não menores frustrações, alunos e colegas de trabalho; entre erros e acertos, pessoais e profissionais, estou eu, um pouco torta no meu canto (drummondiana), um pouco solta demais (caetaneando), tateando a bruma que cobre ST, experimentando sabores e odores, nostalgia e euforia, anonimato e completa exposição de mim e do meu espaço privado.
E, como já me sinto quase dando os primeiros passos para entender ST, decidi começar pelo espaço em que melhor “me acolho”: na escrita. Não, não se espere muito disso. O que farei serão apenas relatos de minha vida aqui e ensaios das letras que me têm passado pelas mãos. Para tanto, apresento-me:
*
Sou brasileira das Minhas Gerais, terra de Rosa, Drummond e Geraldo Pereira. Mais pontualmente, nasci em Leopoldina, mas a minha memória da infância e da juventude construiu-se toda ela em Juiz de Fora, terra de Murilo Mendes e Pedro Nava. E terra das minhas escolhas – ainda que, na maioria das vezes, escolhas para fora dela.
Nasci numa família de gente humilde, mas forte – o caráter dos Mário é meu fantasma eterno, e o outro, Palmeira erguida firme e enraizada na terra – e fui criada, primogênita, com os mimos naturais de um primogênito. Dois anos depois da minha exclusividade no amor do pai e da mãe, veio um irmão. E sete anos e tal depois, uma irmã. Antes de minha família se mudar em definitivo para Juiz de Fora, lembro-me de ter morado em Bicas, cidade pequenina, da qual não trago nada de muito especial (apenas o medo do “homem do saco”, estupidez da babá que tomava conta das crianças, e das agulhas do farmacêutico Valtencir).
Em 1981-2 (?) fomos para Juiz de Fora. Minha irmã ainda não existia. Meu pai havia sido contratado por um banco lá na “cidade grande”, minha mãe era professora primária de uma escola perto da casa nova. A casa nova era grande e muito bem arrumada.
Lembro-me, com clareza, apenas de ter estudado numa escola, o Stella Matutina, onde segui meus estudos até o segundo ano científico (11º ano, atualmente). As outras escolas são sombras na minha memória. No meio do meu percurso, em finais da década de 1980, em ano que a memória rejeita, meus pais se separaram, e desde então, até meados dos anos de 1990, eu não tenho “retratos” da vida em família que sejam dignos de lembrança, ou dos quais eu sequer me lembre, fora os amigos que surgiram aos meus 14 anos (que são os amigos de hoje em dia), e algum vazio deixado pela ausência do pai, que fora brilhante nos tempos em que vivemos juntos. Eu devia ter uns 11 ou 12 anos.
Por não haver relato fidedigno (visto que eu era personagem daquela história familiar e não poderia, é claro, contá-la com alguma isenção emocional sem correr o risco de me exceder ou de diminuir a importância de alguns eventos), sigo para 1998, quando ingressei na Faculdade de Letras na Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas. Antes da decisão pelas Letras, tive contato com diversos escritores que determinaram as minhas escolhas a partir de então, majoritariamente escritores portugueses: Cesário Verde, Fernando Pessoa, José Saramago (cujo primeiro livro foi “A jangada de Pedra”, edição daquelas que vêm nos jornais e que eu comprei com moedas que provavelmente catava pelos cantos da casa). Há de se ressaltar que tentei, antes de prestar o vestibular para Letras, ingressar em Medicina. Há mesmo males que vêm para o bem: nunca consegui passar nas provas, e, aquilo que parecia uma perda de tempo, definiu a minha vida profissional, da qual me orgulho e que amo profundamente.
Ainda em 1998, nasceu a pessoa por quem eu sinto um amor único e absolutamente novo (renovado ano a ano no dia de nosso aniversário e reforçado dia após dia, mesmo com a distância física).
Na faculdade, conheci a pessoa que mudou meus rumos e meus sentimentos (acho que para sempre, se isso não é tempo demais, e se for, melhor assim...).
Durante o curso de Letras, tive aulas com grandes professores (Mário Roberto Zágari foi o maior mestre!) e me envenenei, sem remédio que possa me curar, pela literatura (muito embora o Mário Roberto tenha sido professor de Linguística e de Filologia!)
A literatura me provoca e me coloca, para além da relação “sentimental” que tenho com ela, numa posição mais digna diante da minha própria vida e da minha história. E também me compele a olhar para o mundo de maneira mais comprometida e sensata. Entre meus grandes e eleitos autores, muitos não passaram pelos curricula da faculdade, mas eles estavam sempre me chamando para o combate: Herberto Hélder e Alexandre O’Neill (ou o contrário) me marcaram muitíssimo, de maneiras obviamente diferentes. Entre os autores do curriculum, Mário de Andrade (infelizmente dado de maneira muito duvidosa...), Bandeira, Drummond, João Cabral, Rosa, Camilo Castelo Branco, Eça, Cesário Verde, Mário de Sá-Carneiro, Pessoa, Cardoso Pires, Saramago. E veio o “desfiladeiro” pela literatura portuguesa, que desaguou no mestrado na mesma área. A semente foi plantada lá na UFJF.
E floresceu, anti-institucionalmente, na minha vida cotidiana, na minha “maluquice” incurável aos olhos da família, no meu modo de ver o mundo e de ver o “outro”.
Em conjunto com a decisão pela literatura portuguesa, intercalou-se a decisão por mudar definitivamente os rumos da minha vida emocional, psíquica, que estava seriamente comprometida pelo meio em que vivia. Formei-me em Letras pela UFJF em Maio de 2002 e comecei o mestrado na PUC-Rio em Junho do mesmo ano.
Estava livre.
Sobre o percurso no mestrado, não há muito que anotar além dos protocolos comuns, de uma aluna comum: muito trabalho, muita leitura, cumprimento de prazos e fim do curso, com defesa da dissertação. Sobre o percurso íntimo – estar no Rio, viver o Rio, sair de Minas, gostar de sair de Minas, sofrer por não estar em Minas; amar o Rio, querer o Rio; saber o Rio, disso, enfim, haveria muito o que se dizer.
Foram os anos mais incríveis da minha vida, mesmo com as muitas dificuldades do início.


Como em todas as histórias, de todas as pessoas, encontrei gente maravilhosa (que faz parte da minha vida até hoje, e fará sempre), gente duvidosa, gente que me fez muito mal e gente que me fez muito bem. Normal. Disso tudo, sobrei eu, ou parte do “ego” que julgo ser/ter hoje em dia.

Um pouquíssimo sobre São Tomé e Príncipe

Breve nota acerca do país e sugestões de leitura e pesquisa: São Tomé e Príncipe eram ilhas desabitadas. Foram descobertas pelos portugueses em 1470 e 1471, respectivamente. A ilha do Príncipe foi nomeada, a priori, ilha de Santo Antônio. As ilhas passaram por processos de implantação de uma economia agrícola, em dois momentos distintos de colonização pelos portugueses (foram grandes produtoras/exportadoras de café e cacau, por exemplo). As chamadas “roças” (para nós, brasileiros, fazendas de produção) eram o análogo à indústria responsáveis pela economia do país. Receberam escravos/contratados de várias partes do continente africano, como Moçambique, Angola, Gabão e Cabo Verde, por exemplo. Para além disso, os portugueses também foram responsáveis pelo processo de povoamento das ilhas, com “autorização” para ter filhos com as mulheres “serviçais”. Sendo assim, o que temos é uma ilha mestiça.  Em 1975, São Tomé e Príncipe tornou-se “independente” de Portugal e instaurou-se aqui um governo democrático, muito embora o título encobrisse um cerceamento da liberdade de expressão. Para além disso, as roças foram nacionalizadas, ou seja, entregues aos habitantes locais, majoritariamente os forros (hoje a esmagadora maioria das roças está inativa e sucateada). Surge, assim, a República Democrática de São Tomé e Príncipe. O país ainda "engatinha", como jovem que é, nos processos de constituição de uma democracia real e de desenvolvimento econômico e social. E educacional. (Para conhecer melhor os caminhos políticos e sociais trilhados por este país, sugiro a leitura de “Camaradas, clientes e compadres. Colonialismo, Socialismo e Democratização em São Tomé e Príncipe”, de Gerhard Seibert. Para conhecer a vida nas roças, assistir ao filme de 1908, na CACAU, interessante pelo que mostra e, segundo a professora da Universidade Nova de Lisboa que aqui esteve por ocasião do Dia da África, interessante também pelo que oculta).

O início



Em algum momento, em 2009, decidi me aventurar por novas terras, influenciada positivamente por meu amigo V. (que está hoje na Dinamarca), a me inscrever para o processo de seleção de leitores brasileiros para universidades estrangeiras (MRE e Capes). Naquela altura, estava trabalhando numa escola judaica, o A. Liessin, na qual tive uma experiência incrível como professora e como gente. Enfim, inscrevi-me e vim parar em São Tomé e Príncipe, mais precisamente em São Tomé, ilha situada na costa da África, Golfo da Guiné, pequenina e perdida neste Atlântico imenso.