É inevitável que esta minha voz, às vezes, se sinta um
pouco rouca, cansada. Por aqui, o clima equatorial deixa as coisas bem mais “devagares”
do que o natural corre-corre da vida na cidade grande, e a tecnologia nem
sempre está a nosso favor. A chuva, que deu o ar de sua graça, inunda minha
vida, minha rua e meu prédio. Cada dia que passa é um deus-nos-acuda o
sair-de-casa. Afinal, choverá hoje? A chuva também interfere nos serviços de
comunicação... Nada mais normal!
Todos os dias, é como se tivéssemos de quebrar, com uma
marretinha, um muro imenso de dificuldades para dormirmos, ao final da tarde –
anoitece antes das 18h, lembremo-nos disso! –, com a sensação, ainda longínqua,
de que quase-tudo dos afazeres
diários foram cumpridos. Nós, os seres de vida normal, suamos o dia inteiro,
literal e metaforicamente.
No entanto, no último dia 15 de outubro, eu tive a nítida
sensação de que, mais do que quebrar muros, moveram-se montanhas aqui pelas
ilhas. Trata-se do caso das meninas Lisinaite Boa Morte de Carvalho Vaz, Arlete
Encarnação de Almeida e Eteldilaide Manuel Ferreira. Serei muito breve, pois
espero ser lida, espero apresentar-lhes essas são-tomenses queridas minhas, e
sei que, em meio ao cansaço diário, muitos não conseguem ler sequer uma matéria
de jornal simples (só serei breve por isso, pois esse trio mereceria mais
dedicação...).
Voilà! Sabe-se que o Brasil
oferece, todos os anos, para estudantes estrangeiros, uma bolsa de estudos – o
PEC, Programa de Estudante Convênio – e que num país como São Tomé e Príncipe
quem se beneficia de tais programas são, em geral, alunos de instituições privadas que vão para o
Brasil fazer a graduação (PEC-G) ou alunos que já fizeram o G e vão tentar o
PG, pois já deixaram a vida “mais ou menos acertada” no período dos quatro anos
da faculdade. Vale lembrar que os alunos que já estudaram no Brasil são membros
até mesmo de uma Associação – fazem eventos ligados à cultura brasileira em
conjunto com o Centro Cultural Brasil – São Tomé e Príncipe, e , creio eu,
trata-se de uma Associação aberta a qualquer ex-aluno que foi beneficiado
por nossas bolsas (boa dica para quem ainda não sabia da Associação é
procurá-la e começar a trabalhar também!).
Penso que hajam algumas razões óbvias para que as coisas ocorram
assim, ainda um tanto quanto elitizadas, quais sejam: acesso aos meios de
comunicação com mais facilidade, acesso a escolas privadas – que, como no
Brasil, são aquelas que mais “aprovam” em exames como o vestibular, por exemplo
–, acesso à informação, facilidades financeiras e, finalmente, apoio humano
para a saída daqui.
O que aconteceu no último dia 15 de outubro – feriado
para nós, professores brasileiros! –, último dia de inscrição no PEC-PG, foi
que, depois de muita luta, de baterem de porta em porta exigindo direitos
básicos e pedindo apoio (declaração de vínculo empregatício – coisa complicada!
–, declaração de uma instituição pública de ensino de conclusão de curso de
graduação e histórico escolar – outra complicação não menos entediante –,
acesso à internet e contato com uma IES brasileira, preenchimento do Currículo
Lattes em uma conexão à internet mais complicada ainda, cartas de recomendação
– obrigada às professoras Bia Afonso e Joana Castaño – às 5h30 da manhã – por darem uma mãozona!), o trio Lisinaite,
Arlete e Eteldilaide, meninas de vida dura e humilde de São Tomé e Príncipe,
arrimos de suas famílias, uma mãe, outra, filha sem mãe, e mais outra determinada
e perseverante, recém-saídas de um Instituto Superior Politécnico – cujo
currículo anda muito longe de suas realidades socioculturais e econômicas –,
sem sobrenome imponente de duque, dom, nobrezas quaisquer, o trio passou o dia
na Embaixada do Brasil em São Tomé, e, pelo intermédio longínquo e generoso do
Professor Wagner Rodrigues Silva, da Universidade do Tocantins – a
quem agradeço com maiúsculas e negrito –, finalmente, submeteu a sua
inscrição ao PEC-PG.
São as primeiras alunas do Instituto Superior
Politécnico, do Departamento de Língua Portuguesa, licenciadas, que conseguem,
ao menos, inscreverem-se no processo. Estimuladas e encantadas pela literatura
são-tomense, sob a égide e a magia de Caetano da Costa Alegre, Francisco José Tenreiro,
Marcelo da Veiga e Alda do Espírito Santo, essas meninas partem para uma viagem
cheia de esperança pelo processo de aceitação ao Programa. Depois, se forem
aceitas, partem para uma viagem efetiva, concretíssima, com o objetivo de
trazerem de volta para a terra mãe a literatura que as fez crescer e sonhar com
caminhos mais amplos.
É nisso que eu acredito, firmemente: são os “filhos da
terra” – e essa expressão se lê em textos como os de Aíto Bonfim, como uma mão batendo
forte no peito – são, pois, os “filhos
da terra” que, sem medo de voltarem para casa, sem medo das dificuldades que
vão enfrentar lá e aqui, são eles que vão escrever a verdadeira e concreta
história de São Tomé e Príncipe, buscando para isso subsídios no além mar, com
os pés no chão da ilha e a cabeça expandindo em direção à sua verdadeira nação.
Eu acredito nessas meninas que não querem apenas o status vazio de doutoras (não é só de títulos que se faz um intelectual sério), nem privilégios sociais: elas querem as suas vidas mais
justas, elas querem ser críticas de sua literatura, críticas de sua história política,
social e cultural. Elas querem tomar posse dos que lhes pertence. Elas movem
montanhas também para voltar.
De cabeça erguida, eis que estamos aqui esperando o
resultado desse sonho. E eu, propagadora da notícia, estou esperando ver os meus
alunos e amigos são-tomenses se apropriando efetivamente
do que lhes pertence por justiça e trabalho e mudando o curso da história
de seu país. E relembro: aqui, com os pés fincados na ilha como “tábuas rijas”.
Alea
jacta est, meninas. Mesmo que não seja dessa vez, um grande
obstáculo foi removido da frente de outras lisinaites, arletes, eteldilaides
que ainda virão por aí. Eu ainda verei os seus nomes figurando nos livros de
literatura, nos manuais das escolas, quando eu estiver no Brasil estudando a
sua literatura. Disso, não me restam dúvidas!
Naduska Palmeira, leitora em São Tomé.