terça-feira, 8 de outubro de 2013

Cerzir

"Mas eu sei que você virá, você virá e passearemos pela marginal de mãos dadas enfrentando o sol da Baía com os olhos limpos das névoas da saudade." (da minha amiga S. para mim, hoje.)
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Então, depois de semanas nebulosas, entre raios e tempestades, estive frente a frente com os mais abomináveis atos que uma pessoa pode cometer. Mas antes que se pense que isso é ruim, eu já explico que não, não é ruim. Eu tresli o Grande sertão: veredas, que é minha obra-chave pra todo momento da vida, e ali estão claros os nossos limites, e a nossa mais pura essência (com licença da palavra): viver é perigoso, e ser gente é perigosíssimo! É preciso sempre ter em mente que o tempo inteiro o que há de mais humano em nós pode derramar... e não adianta depois chorar sobre o derramado. O que foi, deixa estar. Não se conserta. O que se tem de fazer é cerzir a própria alma. Chega uma hora em que o ego tem de ser o centro de cada "eu", e topar com as dores, as dificuldades, e as coisas pérfidas (as que praticam contra nós e as que nós praticamos contra os outros e, mais uma vez, contra nós mesmos) não é exatamente ruim. É, muitas vezes, absolutamente necessário para nos compreendermos nessa difícil condição humana, que tentamos incansavelmente dominar, mas que no fundo, tem uma fragilidade imensa, da qual sequer damos conta às vezes. É como conhecer o médico e não saber que nele há o monstro. A linha que os separa é muito tênue. Escrever ajuda a elaborar os "erros", os arroubos, e entender os acertos, olhar mais para eles. Fazer um inventário de coisas gostosas vale a pena, mas não esquecer o inventário das coisas que nos fazem ser humanos é fundamental pra reconstruir o caminho que escolhemos.
E deixemos de filosofias vagas...
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Num intervalo de sossego matinal, peguei o livro do Michel Laban que contém entrevistas com escritores de São Tomé e Príncipe, e me deparei com as fotografias deles - uns que conheci, outros que não. E não consegui ler, porque as imagens me deixaram com aquelas saudades atlânticas... Fechei o livro, entendi que ainda não consigo remexer nas memórias são-tomenses, respeitei o meu sentimento e fui me deitar um pouco. Sonhei que algumas coisas que não aconteceram em São Tomé tinham acontecido. Sonhá-las foi uma forma de realizá-las. Que interessante: eram letras em cima de uma superfície muito grande, muitos papéis, e junto disso tudo, uma voz que lia poemas sobre as ilhas. Despertei, gravei na memória o sonho, tirei da frente dos meus olhos os livros que me deixam com saudade, e saí.
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Descobri, finalmente, uma livraria pertinho de mim. Ando alguns minutos, e lá estou eu, zonza entre tantas obras. Optei pela crônica: texto rápido, na maioria dos casos, fácil, e às vezes até lúdicos. Mas a minha mão sempre pára em Clarices e Caios... Dessa vez, peguei as "Pequenas epifanias", subi mais um lance de escadas na livraria, pedi um café, um cheese cake, e li só o prefácio, que por si só já é uma graça! Escrever é uma forma de libertação, mas ler também: dá uma sensação de liberdade absurda, de saber-se no mundo e permitir a fruição estética. É preciso alimentar o espírito.
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Agora, de volta a casa, tento esboçar essas linhas, e nunca considero que estão boas. No entanto, gosto de escrever e de ler depois o que escrevo, ainda que não me apraza (essa palavra existe?). Escrever é uma forma de entender o humano, e de me reconciliar comigo mesma. Falar das saudades de São Tomé e dizer que ainda não consigo mexer nas memórias é uma forma de reavivar as memórias com doçura, de trazer pra perto de mim um pouco do cheiro daquele mar, das mãos das pessoas que amei e tirar as névoas da saudade. Falar das nuvens cinzas das últimas semanas também é uma forma de afastá-las, de me culpar menos por ter atitudes demasiado humanas, de pensar mais antes de extravasar essa humanidade de forma negativa.
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Enfim, cerzir, cerzir o espírito, reconciliar-me comigo e com o mundo, compreender o retorno e o recomeço da vida. Aceitar a novidade. Ver as fotos dos meus escritores e outras fotos dos momentos felizes que passei nas ilhas, não apagá-las num átimo de raiva ou tristeza. Deixar aqui as lembranças. Construir sobre elas um caminho firme. Ir, pausadamente, enxergando o centro de mim mesma, e me respeitando mais. Deixar o tempo fazer seu trabalho impecável! Deixar que a paciência venha inundar a alma cansada e apressada. Permitir que o novo invada cada poro do corpo, e me refaça. E que com isso eu me reconheça outra vez.
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Essa é a tarefa diária.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Casa

De volta a casa, o Rio amanhece no primeiro dia de minha volta definitiva. Ainda um pouco embaralhada com a viagem, o fuso, a saída difícil de STP, tento arrumar o meu caminho de modo a fazê-lo em paz. Tento mais, muito mais, mas o que há de particular é ainda indescritível, uma aventura que continua no tempo, um desejo grande de estar feliz, de "deixar-me ir com o tempo e aconchegar-me". Não são 6h da manhã e já tenho os olhos muito acordados.
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Eu queria que a felicidade não sofresse influências que a tentassem tirar do lugar. Nem que a esperança fosse menor do que algumas distâncias. Queria que todo mundo fosse leal e tivesse bom-senso. Queria que o imponderável fosse sempre bom. Afinal, o que fazemos a não ser lutar pela vida, essa vida que insiste em ser tão bonita?
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Bom dia no Rio... E que o tempo e a implacável distância atlântica não rasurem as felicidades de ter vivido em São Tomé e Príncipe.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Lidar com a viagem: uma pequena arte.

Vão se afastando, lentamente, no tempo, as margens de São Tomé. No entanto, esta partida, física, não foi suficiente para que as memórias se afastassem na mesma medida. Impossível comparar o concreto com o afeto, mais ainda se este afeto é tão recente; sabe, ainda, na boca, a umidade ilhéu.
Lisboa passou em dias corridos. Eu, e a minha tentativa de ser paciente... Eu, e as marcas que me ficaram, "inamovíveis".
Agora, parto para a ilha da Madeira. Mais um colóquio, mais uma forma de ir, aos poucos, cumprindo minha promessa de ler e levar Conceição Lima comigo para onde quer que eu vá. Na bagagem da São, vêm outras descobertas, lembranças de encontros memoráveis, como com Alda do Espírito Santo, em 2009, aceso pelo poema "Gravana". Encontrei-me também com o Fred dos Anjos, em "A mão do poeta", Amigo cujas mãos teimam em escrever na memória histórias das ilhas, memórias de agostos setembros, conversas entre longos e graves silêncios...
Toda vez que estou no ar, sinto-me livre e estranhamente feliz. Escrevo agora enquanto voo, e voa também meu pensamento, fugindo para São Tomé por instantes. Contudo, a vida - a continuidade da vida - me impele, e já não posso negar seu chamado. A vida, e todas as suas novidades, que são o que a faz seguir.
Sigo para mais um olhar sobre o mundo, mais uma ilha para guardar na memória. Preenchemos os momentos com nossa ávida busca pelo equilíbrio, e a felicidade.
A felicidade, esta sensação indizível.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Em 15 de setembro de 2009 foi assim...

(...)
"E é por isso que sem medo, e com o gosto de vontade de vida, não digo, mas sopro o maior "adeus" que poderia. Não te entrego a Deus, mas sim aos ventos, tendo a certeza de que eles saberão exatamente onde você deve pousar na calma da vida. São as palavras que nos calçam: em terra(s), em ar, pouco importa, somos sons, somos vôos, somos o que é grande - o que é pra sermos."

Obrigada, S., por essa carta tão linda que guardei comigo até hoje e que pousará comigo na calma do novo lar, na paz da nova vida, nas belezas dos amores e amizades.

Vim com o vento, e volto com ele.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Do olhar.

É preciso desfazer o nó e transformá-lo em laço. A distância, todas as emoções vividas vão adquirindo formas outras, mais leves, mesmo que mais diáfanas também. Algumas coisas que pareciam concretas se afastam lentamente e se tornam objeto de análise mais profunda e - talvez - mais profícua tendo em vista o desenvolvimento. Já tenho tentado escrever há algum tempo, mas sempre considero que não é o momento, que ainda estou muito ligada a São Tomé e que essa ligação me deixa um pouco míope em relação ao país. Por isso me valho sempre da prudência ao escrever.

Pisar de novo STP não foi fácil - e, desta vez, especialmente diferente -, não é fácil estar em STP. Tanto há para resolver, desde as burocracias até as coisas mais íntimas, que não sobra muito tempo para avaliar - e de novo isso - o tamanho da experiência. Sei que construí uma história, e uma história nada desprezível, construí também pontos de apoio, inventei pessoas, criei personagens que me fizeram sobreviver até aqui. Mas, aos poucos, a realidade vai "chovendo sua chuva fina" e com ela acendem-se verdades, umas muito duras, outras muito especiais. Mas o que será a verdade, afinal? Tenho colocado isso em xeque o tempo todo, tenho me colocado diante do espelho e me feito esta pergunta: quem eu sou agora? Muitas vezes, os espelhos criam imagens deformadas, muitas vezes nós criamos sobre o Outro imagens deformadas - o que não significa que o outro tenha aquelas deformidades. O problema é o modo de olhar e o momento em que se vê. Este que se confunde tantas vezes, este que, não menos, se engana; ah, este olhar, o olhar que desejamos do mundo não é o Mundo.

O olhar de hoje, o meu, está enxergando ruínas, retalhos pequenos. Ele deixa rastros de alegria e de dor. E ele leva isso tudo também, gravado na retina. Como recuperar a felicidade? Como recuperar a alegria de sambar - sem saber sambar - na Lapa, de caminhar pelo calçadão de Copacabana, de sentir o cheiro do Rio... se ainda tenho uma parte presa em São Tomé. Como me desvencilhar? Uma boa ideia é levar tudo na mala, tudo tudo tudo. Assim, não fico me lembrando do que deixei, ainda que seja a menor coisinha. Não posso deixar nada. Porque preciso escrever sobre a poesia de Conceição Lima, porque preciso contar a minha história neste país, porque preciso aprender a dar valor à história que escrevi em quatro anos. Porque preciso de isenção. E preciso deixar secar tudo o que me fez sofrer. Mas não deixar secar o coração. Tarefa complicada.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Fragmentos...



Muitas foram as pessoas que me fizeram a justa pergunta: “e então, sentimento de dever cumprido?”
Eu não sei responder a isso. Pelo menos ainda não.
Uma experiência como a de viver quatro anos em São Tomé e Príncipe não se elabora da noite pro dia e nem tampouco se escreve em meia página. Não sei se havia dever a cumprir.
O pouco que eu consigo dizer hoje é: considero que alguns alunos entenderam o recado que eu não fui dar, e o recado era simples como dizer “libertem-se”.
Simples?
(Eu fui para STP para ser professora de língua portuguesa - a minha língua materna - e de literatura brasileira, além de "animar" outras atividades ligadas à cultura brasileira. Nunca fui professora de língua portuguesa lá.)
Paro agora essas linhas e escrevo para não sentir o tempo do espaço vazio.
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Conquistar outras liberdades, a de pensamento e a de expressão, foi o desafio lançado para aqueles alunos que passaram por mim. Alguns (não-alunos) entenderam que eu era/sou “louca” (a vantagem das pequenas sociedades é que se sabe de tudo. E é também a desvantagem!) Mas que maravilha ter sido louca! Isso significa que alguma coisa diferente eu tinha pra mostrar (e, convenhamos, lidar com a diferença é muito difícil). Entre caminhos tranquilos e outros extremamente ruidosos dessa longa jornada, eu prefiro trazer pra casa
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os zelos dos poucos amigos são-tomenses e brasileiros que fiz
a beleza dos versos de Conceição Lima
o romanceiro albertiniano (termo que acaba de nascer, retirado do limbo por 4 mãos)
a marca da paisagem no olhar
o mar...
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Guardo também um sentimento de gratidão pela terra que me acolheu. Nem sempre foi fácil viver ali, mas da paz de atravessar a rua silenciosa e tomar um café no Avenida da Inácia e seus gatos... não se esquece.
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Elaboro os ferozes embates em relação à língua (embora vá tomar algum tempo). Aqui no Brasil, no meio em que convivo, aceitamos a nossa língua, não temos problemas com nossos sotaques, e nem sempre sabemos que Portugal está na Europa (?). Gosto de voltar a conviver com uma aparente paz linguística — a paciência — e o respeito para com os valores de cada marca dos milhões de falantes desta terra brasilis. Estamos longe de ter uma política linguística ideal (mas o que será esse ideal?), no entanto o caminho que já percorremos em relação ao colonialismo é mais longo e, se eu comparasse com STP, estaria sendo no mínimo injusta. Cada povo tem seu tempo de maturação. É preciso respeito e cuidado.
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Mas eu queria desejar que STP fosse ele mesmo, com suas falas deliciosas e todas as suas outras quatro línguas na rua, nas bocas das pessoas, nas salas de aula!!! Eu sinto saudade do rrrr que só ouvi lá.
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E a vida segue apressada lá embaixo, na rua. Uma imensidão de carros e ônibus.
É preciso ter calma agora.
E aos poucos ir relembrando o que significaram pra mim esses anos todos, em que eles me fizeram ser diferente, marcando o indivíduo que sou (posso ser) hoje.
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Estes são fragmentos apenas. Para não deixar o blog tanto tempo abandonado!(?)
Fragmentos.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Minicurso Introdução ao estudo das línguas crioulas

Prezados,

nos dias 20, 21 e 22 de agosto, a professora Ana Lívia Agostinho (doutoranda - Universidade de São Paulo - USP) ministrará o minicurso "Introdução ao estudo das línguas crioulas"
na Sala de aula da Embaixada do Brasil em São Tomé e Príncipe, das 9h às 11h da manhã.

As inscrições estarão abertas até o dia 16 de agosto, na recepção da Embaixada, das 9h às 12h e das 15h às 16h.

As inscrições são gratuitas!

Os participantes receberão um Certificado.
Estejam à vontade para pedir esclarecimentos, via email ou na Embaixada.Contamos com sua participação.
A organização.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Pureza, simplesmente — é que eu também sou ave!

Me encantam as pessoas que se gritam no mundo sem medo. Eis que fala o Amigo Fred, em poema:

"Sou ave
livre
voo
do bando
com quanto gosto
vou e venho
pode ser
como se diz
tomo rota falsa
rumo ao céu

Tenho asas
não mais que duas
pode ser
como se diz
não tenho jeito
vou só com o vento
quem alto voa
se cai
ADEUS.

Trago ensanguentado
o meu bico
comprido
quem perde?
o quê?
que mal fiz?
a quem?
se me quebram o bico?"

(Frederico dos Anjos, poeta são-tomense)

Albertino Bragança e Edjmilton Fernandes

No dia 26 de julho, encerrei minhas atividades no ISP-STP (Instituto Superior Politécnico de São Tomé e Príncipe) com muita graça: uma sessão de defesa de monografia do então licenciando Edjmilton Fernandes com a presença do autor estudado, o Sr. Albertino Bragança. Autor de três obras fulcrais para a prosa são-tomense (Rosa do Riboque e outros contos, Um clarão sobre a Baía e Aurélia de vento), Albertino, com sua generosidade e delicadeza características, nos brindou com sua presença, incentivando e encorajando o meu (com muita honra!) orientando Edjmilton a fazer uma bela defesa do seu "Mulheres de Bragança: o feminino nas obras albertinianas". Reproduzo aqui o resumo do trabalho, que, se autorizado pelo autor, publicarei neste blog!

"A obra albertiniana compreende relatos ficcionais, que visa ao conhecimento da realidade santomense dos sécs. XIX, XX e XXI. A estruturação textual das obras, o prazer e o saber vão se tecendo com uma rede de implicações sociais. Esse modo de construção deixa descobertas as realidades colonial e pós-colonial, além da inquietação dos que contestavam o regime político da época.
Do outro lado da mesma moeda, o autor enaltece de maneira heroica a presença feminina no meio dessas controvérsias: trata-se de mulher que surge protagonizada, em primeiro plano, nas obras do romancista. O autor dá voz ao “rugir da leoa”, que era relegada à periferia cultural e social. Diante dos homens, as mulheres estavam quase sempre cabisbaixas, estavam marcadas pelo estigma de “incapazes”, certamente devido a vários mitos que reinavam sobre a sua pessoa e a certos costumes dos tempos. Nem na literatura se ouvia a voz da mulher.
O autor coloca a mulher em acção, como afirma em entrevista concedida a Michel Laban: “…eu forjei essa greve [dos estivadores] e pu-la [Rosa Adriana] a angariar fundos, que era uma coisa que uma mulher corajosa e decidida podia fazer. Ela fê-lo com dinamismo…”
Portanto, as mulheres albertinianas são aquelas que dizem: “somos capazes, não estamos atrás, mas, sim, ao lado dos homens, sofrendo e lutando contra os vendavais dessa sociedade complexa para nós.”

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Para José Eduardo Agualusa


“No princípio, os homens não falavam. Nenhum animal falava, excepto os pássaros. Havia um saco com palavras que estava à guarda de Andua. Foi então que apareceu um rapaz com um único braço, uma única perna e só metade da cabeça. O rapaz roubou o saco das palavras, abriu o saco e meteu as palavras à boca. Na manhã seguinte, quando despertou, era uma pessoa inteira, mas metade rapaz e metade rapariga. Além disso falava, e a sua língua era ágil e harmoniosa como a dos pássaros.” (De um conto tradicional ovimbundo, em Seleção de Contos, Provérbios e Adivinhas em Umbundo, de Jeremias Capitango) Apud AGUALUSA, José Eduardo. Milagrário pessoal. (Apologia das varandas, dos quintais e da língua portuguesa, seguida de uma breve refutação da morte). Dom Quixote: Alfragide, 2010.


Caiu-me nas mãos, Agualusa, no meio do sul da ilha de São Tomé e Príncipe, lá em São João dos Angolares, o seu Milagrário pessoal. Como um milagre, em meio às turbulentas águas que me vêm encharcando a alma nos últimos dias – de alegrias, e não. Como um milagre, suas palavras. Como milagres, os sorrisos calados no canto da minha boca ou nas minhas “retinas fatigadas”. Iara – nome que me joga numa tribo indígena do meu Brasil – me inquietou com as suas inquietações, e o professor, meu ombro de África, meu corpo de África, meu milagre no final de quatro anos vivendo em África. Você bem sabe, Agualusa, que não falamos assim no Brasil, de África, em África. Mas é aqui que estou, e daqui estou bebendo as palavras dos anônimos que me deram sorrisos e me ensinaram a dizer que vou dar gato banho, que simbrão hoje muito tem nove, tem dez, que não dá boleia gen’ noite, wê be wê, wê na be kloson fa êêê... Eu me regozijo a cada frase que fere meus ouvidos de brasileira, das Minas Gerais de Rosa e Drummond. E de um pedaço do Pantanal de Barros e do Rio/Bahia (ou será o contrário, ou tudo amálgama?) de Caetano. Ando tão cansada, Agualusa, e seu nome aquático é o que carrego agora pra onde vou, pra onde quer que eu vá nesses dias finais de São Tomé, que você também conhece. Confesso que estou cansada de saudade do Brasil, da pele da mãe, dos batuques do irmão, dos cabelos da irmã, da careca do pai, da voz das crianças, do seio dos amigos. Cansada de saudade do meu sotaque caipira, delicioso sotaque da minha família, do quintal onde enterraram o meu umbigo. Cansada de calar o óbvio e gritar muda pro mundo nada que se escute. Sou professora, e a mim me preenche o afeto dos meus a-lunos, lunas, que giram em torno da minha outridade e me ofereceram o espelho de não me ver. (Veja que estou com seu estilo nos poros.) Mas o Milagrário veio para me descansar a saudade e fazer nascer em mim uma espécie de pássaro, que voa longe, mas um pássaro muito pequeno, que some no firmamento, porque eu, Agualusa – e você nunca me conheceu e talvez nem nos conheçamos no futuro – sou pequena como esse pássaro que some, e meu amor pelas coisas da vida são como vôos perenes, longínquos, rastros. Um dia eu brinquei de ser poeta, escrevi palavras, mas quando eu juntei elas todas, percebi que só fazia inventário, por isso receio te dizer que um dia falei de milagres nos versos que tombavam da minha caneta. Mas o milagre muito íntimo do último dia é esse livro, sem segredos, que, como uma catapulta, me tirou da tormenta e me deu um certo “dialeto coisal, larval, pedral” que me fez ter coragem de te escrever essas linhas, com um poema pendente delas, jogando-as ao vento, sem saber se me lerá. Obrigada, Agualusa, pelo Milagrário pessoal.


— poema pendente —

Reticências

Sinto na boca o cheiro do sal
do mar verde e calmo daqui.

Caminho pelas ruas e não sei pensar.
Meus divagares são pássaros marinhos,
salgados.


quinta-feira, 27 de junho de 2013

Últimos dois experimentos e fotos de alguns autores!






A poesia

Para compreender a poesia deve-se conhecer rima, métrica, classificação. Deve-se mastigar as palavras e mudá-las e transformá-las. Deve-se mudar a vida e transformar o mundo num jardim com diversas flores.
Deve-se aproveitar a vida e viver-se feliz.
***
Mário foi tocado pela poesia, partindo de palavras simples e significativas, que podem transformar o ser, porque a poesia é trabalho, é um caminhar contemplativo.
***
Mário Ruoppolo, homem simples, conquistou sua Beatrice com palavras e Metáforas...

(Ana Mota)

  

As mãos do poeta cortam cebola
(Para a São e o Fred)

As mãos do poeta fazem ninho em
meus cabelos.
Sua voz ecoa, cheiro forte, em
meus ouvidos.

As mãos do poeta dizem que
meus dedos
precisam água e vento
que
meus versos
precisam cebolas e alimento.

Os olhos do poeta habitam
minha pele.
Suas pálpebras, janelas, lágrimas
tateiam
minha alma.

A voz do poeta fala línguas
diversas.
Mãos diversas, pupilas, cheiros.
Meus versos precisam
braços
para serem, poeta.

(Naduska Palmeira)

E mais experimentos feitos pelos alunos do primeiro ano de Língua Portuguesa do ISP!

 
Poesia

Contigo aprendi a andar,
contigo aprendi a olhar,
contigo aprendi a sonhar,
contigo aprendi a amar.

Eu, que não te conhecia,
porque a olho nu ninguém te via.
Os sonhos, as paixões, que para mim estavam tão distantes
se revelaram a partir do momento em que tu a mim te mostraste

À minha vida deste sal,
aos meus olhos cegos fizestes ver.
A dor, que outrora me oprimia, já não me faz mal.

O amor eu conheci, na vida eu cresci.
A bela arte de viver aprendi para sobreviver.
Das grades da Caverna me fortaleci.

(João Quéner)


           
Quero ser poeta!
Poeta acima de tudo!
Qual é o segredo?
Segredo não há...

            Como Pablo, comecei
a caminhar à beira-mar
observando o vai e vem
das ondas...

            Que maravilha!
Maravilhosa é a sua
imensidade, que não
consegui compreender...

            Ali andei, andei à
procura duma palavra
com oito letras:
Metáfora!

E foi com a metáfora que
conquistei Beatrice.

(Luisa Inácio)

Lançamento do livlu-nglandji santome-putugêji e meu "discurso"

Na mesa, Naduska Palmeira, Leitora no ISP, Gabriel Antunes, da Universidade de São Paulo, Professor João Pontífice, vice-presidente do ISP, e Tjerk Hagemeijer, da Universidade de Lisboa


É com muita satisfação que lançamos hoje, dia 25 de junho, no ISP, o dicionário livre santome-português / livlu-nglandji santome-putugêji, apoiado pelo Programa de Reforço ao Leitorado Brasileiro. São autores da obra o professor Gabriel Antunes, da USP, e o professor Tjerk Hagemeijer, da UL. Ademais, devemos ressaltar que também são autores todos aqueles que colaboraram com os pesquisadores, enviando suas contribuições, dando entrevistas, discutindo os parâmetros e os paradigmas do dicionário, e todos aqueles que falam, escrevem e escreveram a língua santome.
Para São Tomé, trata-se de um passo imenso para a tão discutida valorização das línguas crioulas faladas nas ilhas – quatro, no total – visto que, desde já, os desejos se fizeram escrita, e esta, como diz o velho ditado latino, permanece. O livro já foi lançado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 19 de junho, em conjunto com a Associação para os Estudos dos Crioulos de base Portuguesa e Espanhola e da Society for Pidgins and Creole Languages, e será lançado na UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira), no Brasil, em 04 de julho. E, ainda, no dia 12 de julho, será lançado na Feira do Livro de São Tomé e Príncipe, em Lisboa.
Agradeço à Embaixada do Brasil pelo apoio, fundamental na compra de alguns exemplares do dicionário para a distribuição gratuita em STP. Agradeço ao professor Gabriel Antunes, que veio lançar a obra conosco, e com os são-tomenses, os mais interessados no assunto. Estendo os agradecimentos ao professor Tjerk Hagemeijer, pela presença nesta sessão e por todo o trabalho realizado.
Gostaria de aproveitar o momento para dirigir algumas palavras aos senhores, de minha inteira responsabilidade, acerca de minha experiência como leitora neste Instituto, já que me despeço do cargo com este evento. Tenho acompanhado ativamente as discussões que se fazem sobre as línguas em STP. No que diz respeito ao santome, já se vê hoje uma atitude acadêmica e política para valorizá-lo, não deixando assim que ele se transforme apenas em memória longínqua.
Começo aludindo a Eduardo Lourenço, intelectual português:
“Uma língua não tem outro sujeito senão aqueles que a falam, nela se falando. Ninguém é seu “proprietário”, pois ela não é objeto, mas cada falante é seu guardião, podia dizer-se a sua vestal, tão frágil coisa é, na perspectiva do tempo, a misteriosa chama de uma língua.”
Quanto à língua portuguesa, ainda vejo a necessidade de se descrever o português são-tomense, que possui variedades enormes, e que passa por estudos iniciais, na UFRJ, por exemplo, afim de se verificar os fatores que promovem essa variação, associada possivelmente à escolaridade (quanto mais escolaridade, mais lusitanizado, e o contrário, mais são-tomense). Tem havido cada vez mais estudos  acerca dessas variações, todas elas legítimas e que precisam ser  valorizadas como tais. Os esforços têm como finalidade a abolição dos discursos acadêmicos e políticos o mote de que “quem fala o padrão, imposto e não adequado ao país, é a elite”, quando em STP não se fala como em Portugal, pensamento que esconde uma realidade muito dura: quem fala uma variante dialetal desse “português mitificado padrão” é e será sempre subalterno, ocupará sempre espaços de menos prestígio social. O problema é que quem fala essa variante dialetal é a maioria da população do país! É necessário, pois, desmistificar a ideia de que existe qualquer português “padrão” (e o que é o padrão?), pois todos nós, falantes da língua, construímos nossos padrões sobre as bases de nossas necessidades de uso. É importante também ressaltar que a norma é essencial para a manutenção da língua e a fala é fundamental para a sua vitalidade. A gramática normativa é o registro da língua, sedimentado, e deve ser estudado. A fala é que dá à língua a sua vitalidade e mobilidade inerentes. Volto a Lourenço:
“A celebrada alma portuguesa pelo mundo repartida, de camoniana evocação, foi, sobretudo, língua deixada pelo mundo. Por benfazejo acaso, os portugueses, mesmo na sua hora imperial, eram demasiado fracos para “imporem”, em sentido próprio, a sua língua. Que ela seja hoje a fala de uma país-continente como o Brasil e a língua oficial de futuras nações como Angola e Moçambique, que em insólitas paragens onde comerciantes e missionários da grande época puseram os pés, de Goa a Málaca ou a Timor, que a língua portuguesa tenha deixado ecos de sua existência, foi mais benevolência dos deuses e obra do tempo do que resultado de concertada política cultural.”
Como acadêmica e membro deste instituto, posso apenas propor que se debata e se aja mais ainda neste sentido de legitimar a língua do “bom povo são-tomense”, como poetou Manuel Bandeira em “Evocação do Recife” sobre a língua brasileira:

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam...

E retomo: é preciso valorizar a língua do povo do sul, do norte, do centro, das roças, pois este mesmo povo, livrando-se do peso de não poder ascender socialmente, porque não fala uma língua de poder, poderá ter sua auto-estima mais elevada e se tornar verdadeiramente independente. Necessária é a apropriação da língua que deverá ser descrita e a consciência das adequações linguísticas aos diversos contextos de comunicação. A fala não pode ser julgada por valores como “inferioridade” ou “superioridade”.
Camões fundamentou uma língua, e nós fizemos brincadeiras com ela, imprimimos modos de falá-la e de formulá-la, até que se tornasse nossa, embora língua sem dono, e língua de todos.
Desfrutemo-la pois, e demos a ela nossos sotaques, nossas variações.

Naduska Palmeira

segunda-feira, 24 de junho de 2013

E mais!


Beatrice Russo

Aqui estou eu no meu quarto escuro.

Aqui estou eu pensando na moça da taberna.

Estive perto, mas só consegui dizer o seu
nome, Beatrice Russo, Beatrice Russo...

Moça linda, cabelos longos.

Dura, dura como uma pedra, mas
solta como o vento.

Pensava, não conseguia, mas com
a ajuda do meu amigo Poeta, fiz
metáforas que conquistaram
seu
coração, amplo, amplo como
o céu.

Tu não és do homem, mas
de deus
que não te deu a ninguém:
somente a mim.

(Adjamila dos Ramos)



Quando a gente quer

Estou cansado de viver
de ser um homem como sou,
neste lugar sem água
não quero permanecer,
não quero entristecer.

O meu pai é cansado
vive dependente do mar.
Com o corpo salgado,
desgastado pelo frio...

E eu, o que hei de fazer?
Já tenho minha idade,
quero viver a liberdade,
descobrir a verdade
com esperança nos olhos
apostando na mudança.

(Inácia da Glória)

domingo, 23 de junho de 2013

Mais dois experimentos!


Para compreender um poema, já dizia
Drummond de Andrade
que a retórica não serve.

Busquei outros poetas para melhor compreender
e descobri o carpe diem.
Mas, o que seria isso?
“Aproveite o dia”, dizia o dicionário.

Na minha análise dos poemas e poetas
encontrei também outra expressão:
“sugar o tutano da vida”.

O problema é que sou tímida
e é difícil sugar o tutano da vida.
Decidi parar.

Mas, no exílio de mim, conheci Neruda
o poeta comunista.
Apaixonei-me por seus poemas e
tive vontade de ser poetisa.
Esqueci-me da timidez.
Esqueci-me da tristeza.
Esqueci-me da culpa.
Escrevi metáforas!

(Marlene José)


Quero fazer a poesia

Quero fazer a poesia
na noite, na rua
no mar, no céu,
quero fazer a poesia.

Procuro uma longa poesia
brilhante. Uma poesia
que e leve a reconhecer
as maravilhas que existem.

Não há vida sem poesia.
Não há alegria sem poesia.
Mas havendo poesia
na vida
há alegria.

(Marlene dos Reis)

sábado, 22 de junho de 2013

Eduardo Lourenço, em acordos e desacordos. É a vida, é o que nos move!


Não pode dizer-se de língua alguma que ela é uma invenção do povo que a fala. O contrário seria mais exato. É ela que o inventa. A língua portuguesa é menos a língua que os portugueses falam do que a voz que fala os portugueses. Enquanto realidade presente ela é ao mesmo tempo histórica, contingente, herdada, em permanente transformação e trans-história, praticamente intemporal. Se a escutássemos bem, ouviríamos nela os rumores originários da longínqua fonte sânscrita, os mais próximos da Grécia e os familiares de Roma. Juntemos-lhe algumas vozes bárbaras  das muitas que assolaram a antiga Lusitânia romanizada, uns pós de arábica língua, que espanta não tenham sido mais densos, e teremos o que chamamos, com apaixonada expressão, “o tesouro do luso”.
Na nossa Idade Média, o estatuto da língua era, como o das outras falas cristãs, um “falar” sem transcendência particular. Com o Renascimento, abertura sobre o universal segundo o modelo greco-latino, os “falares” europeus tornam-se paradoxalmente “línguas”. E cada língua signo privilegiado da identidade. Nascem os discursos hagiográficos da língua nacional, da bela língua italiana para Bembo, da altiva fala castelhana para Nebrija, da clara língua francesa para Du Bellay, da nossa nobre e suave língua portuguesa, a de Fernão de Oveira, de Barros, de António Ferreira, que a convertem em objeto de culto e orgulho. Diz-me que língua falas, dir-te-ei o estatuto que tens. Nenhum destes endeusamentos ou apologia da dignidade das línguas nacionais é inocente. Fazem parte do processo histórico em que culmina o sentimento nacional. Descobre-se que a língua não é um instrumento neutro, um fator contingente de comunicação entre os homens, mas a expressão de sua diferença. Mais do que um patrimônio, a língua é uma “pátria”. Ainda vem longe o tempo em que para cada uma das línguas dominantes da cultura européia se torne também claro que uma língua não é um dom do céu, prometido à vida eterna, mas um tesouro que deve ser defendido da usura do tempo e das pretensões das outras a ocupar os espaços sem defesa.
A língua é uma manifestação da vida e como ela em perpétua metamorfose. Não há expressão mais melancólica do que a tão comum e tão pouco meditada de “língua morta” nem maravilha maior do que a sua ocasional ressurreição. Como o universo, uma língua viva deve estar em perpétua expansão, ao menos no seu espaço interior, sob pena de se tornar, ainda em vida, “língua morta”. Essa vitalidade não é de mera ordem voluntarista ou do ritualismo conservador de academias ou profissionais das nobres ciências da gramática ou da filologia. É sobretudo obra dos que a trabalham ou a sonham como exploradores de um continente desconhecido: romancistas, dramaturgos, sobretudo poetas, que não são apenas os que assim se chamam, mas todos os que na cotidiana vida se inventam sem cessar as expressões de que precisam para não perderem do tempo que passa, do mundo que se renova e transfigura.
(...)
A celebrada alma portuguesa pelo mundo repartida, de camoniana evocação, foi, sobretudo, língua deixada pelo mundo. Por benfazejo acaso, os portugueses, mesmo na sua hora imperial, eram demasiado fracos para “imporem”, em sentido próprio, a sua língua. Que ela seja hoje a fala de uma país-continente como o Brasil e a língua oficial de futuras nações como Angola e Moçambique, que em insólitas paragens onde comerciantes e missionários da grande época puseram os pés, de Goa a Málaca ou a Timor, que a língua portuguesa tenha deixado ecos de sua existência, foi mais benevolência dos deuses e obra do tempo do que resultado de concertada política cultural. Sob essa forma, um tal projeto seria mesmo anacrônico. Nenhum autor português, nem nenhum estrangeiro, escreveu acerca de nossa ação uma obra como “a conquista espiritual do México”, pois não tivemos nenhum México para conquistar e hispanizar. O derramamento, a expansão, a crioulização da nossa língua foram, tal como as nossas “conquistas”, obra intermitente de ganância (da terra e do céu), mais do que premeditada “lusitanização” como nós imaginamos – porventura enganados – que terá sido a romanização do mundo antigo ou a francização e anglicização dos impérios Frances e britânico. Quiseram também as circunstâncias – na sua origem pouco recomendáveis – que a nossa língua européia, em contato com a africana escrava, se adoçasse, mais do que já é na sua versão caseira, para se tomar esse ritmo aberto e sensual, indolente, do português do Brasil ou o tom nostálgico de Cabo Verde.
A miragem imperial dissolveu-se há muito. Da nossa presença no mundo só a língua do velho recanto galaico-português ficou como elo essencial entre nós, como povo e como cultura, e as novas nações que do Brasil a Moçambique se falam e mutuamente se compreendem entre as demais. Uma língua não tem outro sujeito senão aqueles que a falam, nela se falando. Ninguém é seu “proprietário”, pois ela não é objeto, mas cada falante é seu guardião, podia dizer-se a sua vestal, tão frágil coisa é, na perspectiva do tempo, a misteriosa chama de uma língua. (...) Houve épocas de depressiva configuração em que não era possível pensar no futuro da nossa plural e una fala portuguesa sem alguma melancolia. Hoje não temos motivos para imaginar que, em prazo humanamente concebível, o seu destino seja o dos famosos versos da “Tabacaria”, de que o tempo apagará o traço e a memória. A pluralizada língua portuguesa tem o seu lugar entre as mais falados do mundo. Isso não basta para que retiremos dessa constatação empírica um contentamento, no fundo, sem substância. Se contentamento é permitido, só pode ser o que resulta do imaginar que esse amplo manto de uma língua comum, referente de culturas afins ou diversas, é, apesar ou por causa da sua variedade, aquele espaço ideal onde se comunicam e se reconhecem na sua particularidade partilhada todos quantos os acasos da história aproximou. Não seria pequeno milagre num mundo que sonha com a unidade sem alcançar outra coisa senão o seu doloroso simulacro.

(LOURENÇO, Eduardo. “A chama plural”. In: A nau de Ícaro e Imagem e miragem da lusofonia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. pp.120-4)

Experimentos 3


A Mário Ruoppolo

I
Alma sensível
Olhos que não viam
Alma sensível
Olhos que começam a ver

II
Alma sensível
Tens o poeta como herói
És herói como poeta.
Amas e vês que dói
Se na conquista
Precisares de um poeta
e de seu poema.

III
Alma sensível
Olhos que viram
Mãos que escreveram
a beleza da Itália
a grandeza de tua ilha.

IV
Alma sensível
Olhos que viram
Coração que amou.
Do amor nasceu
Pablito, que não conheceu.
És o valente pai que morreu.

V
Alma sensível
que com as tristes redes
trabalhava.
Ao lado do pai com quem morava
Na ilha de humildes
Humildes com
Almas sensíveis.

(Jessica Bandeira)

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Mais experimentos...


O poeta

Para ser poeta
é preciso andar pelo mar,
olhar ao redor,
ter imaginação e trabalhar.
            Para ser poeta
            é preciso ter gosto,
            oportunidade, dom,
            acreditar que é capaz.
Para ser poeta
é preciso ter novo olhar
criar o seu próprio mundo
a partir do mundo que te foi dado.
            Para ser poeta
            É preciso estar inspirado
            para acordar as palavras ador-
            -mecidas.

(Maria Fernanda Bastos)



Desejo ser poeta

Quis ser poeta
mas não soube por onde começar
Procurei Pablo Neruda
Perguntei-lhe – Como é ser poeta?

Tive respostas, mas não consegui ainda.
Usei a poesia de Neruda
para exprimir a minha
paixão por Beatrice.

Pensei, imaginei, andei
perto do mar, fechei os olhos
busquei as palavras no meu interior
e surgiu a poesia.

(Admizia d’Assunção)