segunda-feira, 15 de julho de 2013

Para José Eduardo Agualusa


“No princípio, os homens não falavam. Nenhum animal falava, excepto os pássaros. Havia um saco com palavras que estava à guarda de Andua. Foi então que apareceu um rapaz com um único braço, uma única perna e só metade da cabeça. O rapaz roubou o saco das palavras, abriu o saco e meteu as palavras à boca. Na manhã seguinte, quando despertou, era uma pessoa inteira, mas metade rapaz e metade rapariga. Além disso falava, e a sua língua era ágil e harmoniosa como a dos pássaros.” (De um conto tradicional ovimbundo, em Seleção de Contos, Provérbios e Adivinhas em Umbundo, de Jeremias Capitango) Apud AGUALUSA, José Eduardo. Milagrário pessoal. (Apologia das varandas, dos quintais e da língua portuguesa, seguida de uma breve refutação da morte). Dom Quixote: Alfragide, 2010.


Caiu-me nas mãos, Agualusa, no meio do sul da ilha de São Tomé e Príncipe, lá em São João dos Angolares, o seu Milagrário pessoal. Como um milagre, em meio às turbulentas águas que me vêm encharcando a alma nos últimos dias – de alegrias, e não. Como um milagre, suas palavras. Como milagres, os sorrisos calados no canto da minha boca ou nas minhas “retinas fatigadas”. Iara – nome que me joga numa tribo indígena do meu Brasil – me inquietou com as suas inquietações, e o professor, meu ombro de África, meu corpo de África, meu milagre no final de quatro anos vivendo em África. Você bem sabe, Agualusa, que não falamos assim no Brasil, de África, em África. Mas é aqui que estou, e daqui estou bebendo as palavras dos anônimos que me deram sorrisos e me ensinaram a dizer que vou dar gato banho, que simbrão hoje muito tem nove, tem dez, que não dá boleia gen’ noite, wê be wê, wê na be kloson fa êêê... Eu me regozijo a cada frase que fere meus ouvidos de brasileira, das Minas Gerais de Rosa e Drummond. E de um pedaço do Pantanal de Barros e do Rio/Bahia (ou será o contrário, ou tudo amálgama?) de Caetano. Ando tão cansada, Agualusa, e seu nome aquático é o que carrego agora pra onde vou, pra onde quer que eu vá nesses dias finais de São Tomé, que você também conhece. Confesso que estou cansada de saudade do Brasil, da pele da mãe, dos batuques do irmão, dos cabelos da irmã, da careca do pai, da voz das crianças, do seio dos amigos. Cansada de saudade do meu sotaque caipira, delicioso sotaque da minha família, do quintal onde enterraram o meu umbigo. Cansada de calar o óbvio e gritar muda pro mundo nada que se escute. Sou professora, e a mim me preenche o afeto dos meus a-lunos, lunas, que giram em torno da minha outridade e me ofereceram o espelho de não me ver. (Veja que estou com seu estilo nos poros.) Mas o Milagrário veio para me descansar a saudade e fazer nascer em mim uma espécie de pássaro, que voa longe, mas um pássaro muito pequeno, que some no firmamento, porque eu, Agualusa – e você nunca me conheceu e talvez nem nos conheçamos no futuro – sou pequena como esse pássaro que some, e meu amor pelas coisas da vida são como vôos perenes, longínquos, rastros. Um dia eu brinquei de ser poeta, escrevi palavras, mas quando eu juntei elas todas, percebi que só fazia inventário, por isso receio te dizer que um dia falei de milagres nos versos que tombavam da minha caneta. Mas o milagre muito íntimo do último dia é esse livro, sem segredos, que, como uma catapulta, me tirou da tormenta e me deu um certo “dialeto coisal, larval, pedral” que me fez ter coragem de te escrever essas linhas, com um poema pendente delas, jogando-as ao vento, sem saber se me lerá. Obrigada, Agualusa, pelo Milagrário pessoal.


— poema pendente —

Reticências

Sinto na boca o cheiro do sal
do mar verde e calmo daqui.

Caminho pelas ruas e não sei pensar.
Meus divagares são pássaros marinhos,
salgados.


2 comentários:

  1. Prezada Naduska, sou professora universitária, como tu, e editora de uma revista acadêmica. Quero dizer-te quão agradável foi a leitura do teu texto.
    Parabéns.
    Shirley

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    1. Shirley, muito obrigada!!!!!! Eu só vi a sua mensagem agora, por puro - e grave - descuido meu. Fico feliz por ter gostado do texto. Eu vivo de escrever, gostaria de viver ainda mais, escrevendo sempre... E aos pouquinhos vou me publicando!!!!!!! Leia sempre, e comente sempre! Pra mim é um prazer manter a interlocução. Abraço!

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