sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Um pouco de lirismo numa história de realidades.


É inevitável que esta minha voz, às vezes, se sinta um pouco rouca, cansada. Por aqui, o clima equatorial deixa as coisas bem mais “devagares” do que o natural corre-corre da vida na cidade grande, e a tecnologia nem sempre está a nosso favor. A chuva, que deu o ar de sua graça, inunda minha vida, minha rua e meu prédio. Cada dia que passa é um deus-nos-acuda o sair-de-casa. Afinal, choverá hoje? A chuva também interfere nos serviços de comunicação... Nada mais normal!
Todos os dias, é como se tivéssemos de quebrar, com uma marretinha, um muro imenso de dificuldades para dormirmos, ao final da tarde – anoitece antes das 18h, lembremo-nos disso! –, com a sensação, ainda longínqua, de que quase-tudo dos afazeres diários foram cumpridos. Nós, os seres de vida normal, suamos o dia inteiro, literal e metaforicamente.
No entanto, no último dia 15 de outubro, eu tive a nítida sensação de que, mais do que quebrar muros, moveram-se montanhas aqui pelas ilhas. Trata-se do caso das meninas Lisinaite Boa Morte de Carvalho Vaz, Arlete Encarnação de Almeida e Eteldilaide Manuel Ferreira. Serei muito breve, pois espero ser lida, espero apresentar-lhes essas são-tomenses queridas minhas, e sei que, em meio ao cansaço diário, muitos não conseguem ler sequer uma matéria de jornal simples (só serei breve por isso, pois esse trio mereceria mais dedicação...).
Voilà! Sabe-se que o Brasil oferece, todos os anos, para estudantes estrangeiros, uma bolsa de estudos – o PEC, Programa de Estudante Convênio – e que num país como São Tomé e Príncipe quem se beneficia de tais programas são, em geral,  alunos de instituições privadas que vão para o Brasil fazer a graduação (PEC-G) ou alunos que já fizeram o G e vão tentar o PG, pois já deixaram a vida “mais ou menos acertada” no período dos quatro anos da faculdade. Vale lembrar que os alunos que já estudaram no Brasil são membros até mesmo de uma Associação – fazem eventos ligados à cultura brasileira em conjunto com o Centro Cultural Brasil – São Tomé e Príncipe, e , creio eu, trata-se de uma Associação aberta a qualquer ex-aluno que foi beneficiado por nossas bolsas (boa dica para quem ainda não sabia da Associação é procurá-la e começar a trabalhar também!).
Penso que hajam algumas razões óbvias para que as coisas ocorram assim, ainda um tanto quanto elitizadas, quais sejam: acesso aos meios de comunicação com mais facilidade, acesso a escolas privadas – que, como no Brasil, são aquelas que mais “aprovam” em exames como o vestibular, por exemplo –, acesso à informação, facilidades financeiras e, finalmente, apoio humano para a saída daqui.
O que aconteceu no último dia 15 de outubro – feriado para nós, professores brasileiros! –, último dia de inscrição no PEC-PG, foi que, depois de muita luta, de baterem de porta em porta exigindo direitos básicos e pedindo apoio (declaração de vínculo empregatício – coisa complicada! –, declaração de uma instituição pública de ensino de conclusão de curso de graduação e histórico escolar – outra complicação não menos entediante –, acesso à internet e contato com uma IES brasileira, preenchimento do Currículo Lattes em uma conexão à internet mais complicada ainda, cartas de recomendação – obrigada às professoras Bia Afonso e Joana Castaño – às 5h30 da manhã –  por darem uma mãozona!), o trio Lisinaite, Arlete e Eteldilaide, meninas de vida dura e humilde de São Tomé e Príncipe, arrimos de suas famílias, uma mãe, outra, filha sem mãe, e mais outra determinada e perseverante, recém-saídas de um Instituto Superior Politécnico – cujo currículo anda muito longe de suas realidades socioculturais e econômicas –, sem sobrenome imponente de duque, dom, nobrezas quaisquer, o trio passou o dia na Embaixada do Brasil em São Tomé, e, pelo intermédio longínquo e generoso do Professor Wagner Rodrigues Silva, da Universidade do Tocantins – a quem agradeço com maiúsculas e negrito –, finalmente, submeteu a sua inscrição ao PEC-PG.
São as primeiras alunas do Instituto Superior Politécnico, do Departamento de Língua Portuguesa, licenciadas, que conseguem, ao menos, inscreverem-se no processo. Estimuladas e encantadas pela literatura são-tomense, sob a égide e a magia de Caetano da Costa Alegre, Francisco José Tenreiro, Marcelo da Veiga e Alda do Espírito Santo, essas meninas partem para uma viagem cheia de esperança pelo processo de aceitação ao Programa. Depois, se forem aceitas, partem para uma viagem efetiva, concretíssima, com o objetivo de trazerem de volta para a terra mãe a literatura que as fez crescer e sonhar com caminhos mais amplos.

É nisso que eu acredito, firmemente: são os “filhos da terra” – e essa expressão se lê em textos como os de Aíto Bonfim, como uma mão batendo forte no peito – são, pois,  os “filhos da terra” que, sem medo de voltarem para casa, sem medo das dificuldades que vão enfrentar lá e aqui, são eles que vão escrever a verdadeira e concreta história de São Tomé e Príncipe, buscando para isso subsídios no além mar, com os pés no chão da ilha e a cabeça expandindo em direção à sua verdadeira nação.
Eu acredito nessas meninas que não querem apenas o status vazio de doutoras (não é só de títulos que se faz um intelectual sério), nem privilégios sociais: elas querem as suas vidas mais justas, elas querem ser críticas de sua literatura, críticas de sua história política, social e cultural. Elas querem tomar posse dos que lhes pertence. Elas movem montanhas também para voltar.
De cabeça erguida, eis que estamos aqui esperando o resultado desse sonho. E eu, propagadora da notícia, estou esperando ver os meus alunos e amigos são-tomenses se apropriando efetivamente do que lhes pertence por justiça e trabalho e mudando o curso da história de seu país. E relembro: aqui, com os pés fincados na ilha como “tábuas rijas”.

Alea jacta est, meninas. Mesmo que não seja dessa vez, um grande obstáculo foi removido da frente de outras lisinaites, arletes, eteldilaides que ainda virão por aí. Eu ainda verei os seus nomes figurando nos livros de literatura, nos manuais das escolas, quando eu estiver no Brasil estudando a sua literatura. Disso, não me restam dúvidas!

 Naduska Palmeira, leitora em São Tomé.

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