domingo, 11 de novembro de 2012

Vamos comer Caetano?



Senhoras e senhores, boa noite.

            É com muita satisfação que a Embaixada do Brasil, o Centro Cultural Brasil – São Tomé e Príncipe e o Leitorado Brasileiro – por ter trabalhado na edição –, que hoje é representado por mim, estão aqui hoje para acender novas luzes sobre o poeta são-tomense Caetano da Costa Alegre, fazendo uma revisão do séc. XIX para o lermos hoje no séc. XXI, com a atemporalidade digna de um artista.
            Não me estenderei em análises de sua obra, pois a professora do Instituto Supeior Politécnico Sónia Almeida, nossa convidada, o fará com pormenores. Apenas gostaria de ressaltar aqui a importância do lançamento e da disponibilização de uma obra que é fundamental para a literatura deste país, e que se quedava muda desde 1994, quando de sua última edição pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda, de Lisboa.
            Há muito ouço, pelas minhas andanças em salas de aula no Instituto Superior Politécnico e através dos famosos boatos são-tomenses, consagrados pela poesia de Alda do Espírito Santo, no seu “sagrado solo”, que neste país não existe uma literatura digna de menção detalhada em livros didáticos do ensino básico ou liceático, e até mesmo que há pouca literatura para ser estudada em sala de aula por alunos do ensino superior da área das Letras, justificando, dessa forma, menos espaço para a análise dela nas grades curriculares.
            Presumo que tenha me deparado aqui com um erro – ou com uma possível falta de informação: desde que cheguei a São Tomé e Príncipe, em setembro de 2009, venho pesquisando a sua literatura, não apenas por ser essa a minha área de atuação, meu trabalho e minha verdadeira paixão, mas também porque senti a necessidade de desmentir tais boatos e de mostrar, pelo menos aos meus alunos, entre as quatro amplas paredes de uma sala de aula num instituto superior que existe, sim, uma literatura e o estudo dela os fará ser os cidadãos críticos da sociedade são-tomense futura.
            Talvez seja hora de olhar para dentro de si e se perguntar: quem verdadeiramente sou? Quem eu quero ser?
            Acredito na literatura, sem romantismos ou ideologias utópicas de minha parte, como uma eficaz fonte de tomada de consciência histórica, nacional e linguística. Não venho aqui dizer que a literatura pode salvar a humanidade, mas ela pode salvar um indivíduo: ela abre as mentes, ela incomoda, põe-nos a pensar, a questionar paradigmas, dogmas sociais e políticos, ela nos faz pensar de forma independente, ela cresce em nós à medida que é desvelada. E ela cresce nas ruas e nos discursos à medida que é estudada e trazida à luz.
            No Brasil, desde a década de 1920, vimos construindo uma pátria literária: sobrepujamos a necessidade obsessiva da auto-afirmação, já não questionamos, a um molde negativista, nossa identidade plural, mestiça, já não alimentamos fantasias colonialistas ou rancores xenofóbicos. Para tanto, precisamos, antes, valorizar o povo que fomos e construímos, precisamos levar para as elites políticas e sociais a língua do mestiço, a língua brasileira, falada nas ruas, cantada nas nossas músicas; língua nova, revelada pelos artistas do Modernismo. Com esta língua nos reconciliamos com a nossa origem, com as nuances de nossas cores, com nossos vários sotaques, enfim, com o que hoje podemos chamar Pátria.
            São Tomé e Príncipe, apesar da distância geográfica em relação ao Brasil, teve um percurso um tanto quanto parecido com o nosso: história de colonizadores e heróis, história de mitificação da história, de luta e revolução com palavras, de frontalidade com a realidade. É claro que não posso comparar a história de uma nação de quase duzentos anos com a de outra de 37 anos. No entanto, sinto que a passos largos, os são-tomenses, ainda que muitas vezes de maneira inconsciente, têm buscado conhecer-se, situar-se no mundo atual. Se não conhecer-se, ao menos encontrar-se.
            Talvez a literatura possa apontar o caminho dessa busca, mas é preciso voltar ao séc. XIX e esclarecer o posicionamento ideológico e cultural de seus artistas, obscurecidos pela política colonial à época, e mais tarde, oprimidos por um regime que coibia a liberdade de expressão. É uma história de traumas, mas não menos de lutas e resistência.
            Caetano da Costa Alegre, tantas vezes obliterado no seu solo pátrio por Francisco José Tenreiro (que seja a ele dado o lugar devido, claro) viveu em São Tomé e Príncipe, mais precisamente na ilha de São Tomé. Viveu aqui 19 anos e foi estudar na Metrópole, nos finais do século retrasado. Defrontou-se e confrontou-se com uma sociedade branca, racista, de mentalidade opressora. Sentiu, no entanto, a poesia correr em suas veias e encontrou nela uma via de liberdade de expressão. Foi um homem negro que trabalhou com as palavras a antítese frisante de que nós todos, seres humanos, ora somos compostos. Não rejeitou a sua cor ou a sua nacionalidade; exaltou a beleza da mulher negra, sentiu as tristezas próprias de um jovem rejeitado pelas mulheres da metrópole, enveredou-se pelo naturalismo – influenciado, talvez, pela sua relação com a medicina – desvelou o homem, idealizou o amor romântico, tratou das questões da cores negra e branca como material artístico.
            Acredito em processo literário, assim, acredito que, muito mais que “fundar” uma literatura são-tomense, Caetano da Costa Alegre fez parte deste processo de tentativa de inclusão sua e dos demais leitores de seus Versos, mais tarde, numa sociedade outrora desigual e opressora. Hoje, no entanto, podemos chamar os Versos de obra fulcral para compreensão do sentimento de um homem negro numa sociedade racista. E para, em processo de maturação, compreendermos os homens todos, vivendo juntos, homens mestiços na pele e no pensamento, inventando um modo novo de ser e estar no mundo, com apenas 37 anos de idade.
            Assim, volto ao ponto inicial, pois, como já disse antes, caberá à professora Sónia Almeida falar mais sobre o poeta da noite: Caetano da Costa Alegre, como muitos outros que vieram depois dele e viveram verdadeiramente São Tomé e Príncipe, são dignos de figurarem em nossas salas de aula, em nossas conversas diárias, em nosso imaginário mítico, ético, político e social. Basta que se acredite nesta nação em processo. Olhar para dentro de nós mesmos, investigar os cantos de nossa nacionalidade, colocar de lado o nacionalismo indeciso e incerto: a arte literária proporciona a organização e a maturação de tais pensamentos, incomodando-nos à exaustão, como que gritando: “existimos”.
            Nesta noite eu convido a todos que aqui estão a conhecer Caetano da Costa Alegre, o poeta que da Europa mostrou que São Tomé e Príncipe existe, que possui suas idiossincrasias como todo país, e que, hoje, é uma nação em processo de reconstrução identitária e em franco processo de valorização de si mesma.
Muito obrigada.

Naduska Palmeira

Nenhum comentário:

Postar um comentário