domingo, 5 de junho de 2011

Sob a pele da palavra.

Comunicação apresentada no Seminário Internacional Francisco José Tenreiro, em São Tomé e Príncipe, em janeiro de 2011.

Agradeço à Simone Caputo Gomes e ao Edimilson Pereira pela leitura prévia do texto, leitura cuidada e crítica (algumas perguntas que recebi de vocês foram reproduzidas no texto...)
E agradeço ao Leandro Vieira, Primeiro Secretário da Embaixada do Brasil naquela altura, pela apresentação do trabalho no Seminário, visto que não pude ser eu a fazê-la, pois estava afastada de minhas funções, por motivos de saúde, no Brasil.

*


SOB A PELE DA PALAVRA, AS ILHAS. Uma leitura da poesia de Conceição Lima*

Por Naduska Mário Palmeira



Para onde devem voar os pássaros
depois do último céu?
(Mahmoud Darwish, apud Homi Bhabha,
in O local da cultura)

Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas,
como reconheceram os gregos, a fronteira é o
ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente.
(Martim Heidegger)


A poeta Conceição Lima realiza, em sua obra, uma trajetória inovadora para o contexto das artes literárias de São Tomé e Príncipe. Busca, em sua poética, projetar a terra sonhada de São Tomé e Príncipe como buscasse re-encontrar a própria Casa. Ou defrontar-se com a sua própria identidade. Essa trajetória pode ser fruto de uma moldura histórica – que impulsionou os intelectuais das ex-colônias ao exílio (ainda que não tenha sido “forçado”, no caso da poeta) – e, de uma perspectiva ontológica – que impõe ao sujeito o paradoxo de permanecer e, ao mesmo tempo, partir de sua terra originária.
Assim, instala-se o paradoxo com o qual a poeta vai lidar em seus textos: voltar e assim estar na casa em que nasceu e, por outro lado, tentar recriá-la a partir da memória da terra construída no “exílio”. Conceição Lima procura escrever uma narrativa da nação, como, segundo Homi Bhabha*, “uma forma de afiliação social e textual” à “nationness”.
O tom de seus poemas, ao narrar a sua própria trajetória sentimental e íntima pelas Ilhas – e longe delas –  é nostálgico, como se se colocassem, a poeta e o eu-lírico, de frente para as ilhas, mas em alto mar, vislumbrando a terra,  numa posição de confrontamento e reflexão. E a “sensação” que se pode ter ao ler Conceição Lima é a de que nós, leitores, pairamos sobre as suas palavras, tal como as palavras pairam sobre as ilhas, a fim de conhecermos sua terra e penetrarmos suas entranhas, suas “formas”, sejam elas concretas ou abstratas, reais ou projetadas no corpo do poema, como se pode ler em:


Aqui projectei minha casa:

(...) Aqui
sonho ainda o pilar –
uma rectidão de torre, de altar.
(A casa, grifo meu)


A fim de empreender uma viagem pelo interior desta poética e buscar pistas acerca das veredas identitárias e de reconstrução da terra natal ou retorno ao lugar originário (ou útero) que Conceição Lima percorre, optei por analisar, pontualmente, os poemas da obra O útero da casa, já que em A dolorosa raiz do micondó o sentido de identidade e de busca da africanidade – e não apenas da santomensidade – amplia-se a uma busca mais coletiva que íntima, mais africana que santomense*. Contudo, ainda assim, Lima anuncia um percurso de descoberta/conhecimento do seu próprio povo em O útero da casa. Esse conhecimento depende, no entanto, “de uma substância muito mais fundamental que está ela própria sendo continuamente renovada”, como afirma Homi Bhabha, citando Franz Fanon ao se colocar contra “a forma de historicismo nacionalista que admite haver um momento em que as temporalidades diferenciais de histórias culturais se fundem em um presente imediatamente legível.”*
As palavras de Conceição Lima, ao rememorar o passado, como mencionei a priori, parecem pairar sobre a paisagem da sua casa, física, e transformá-la numa paisagem metafísica, sonhada, em um contínuo movimento entre escrever o passado e conhecer-se no presente. Buscam aquela “substância fundamental” que arranca a narrativa histórica do espaço ao qual habitualmente pertencia, os governos, as elites econômicas. Contudo, sem a ênfase panfletária de alguns poetas africanos que levantaram a bandeira da independência e incentivaram a luta, na pele de seus textos, pela consolidação de uma república independente da metrópole – outra tendência da arte poética produzida em São Tomé e Príncipe após a independência, conquistada em 1975 – Lima adota a postura de alguém que apenas espera, a poeta “rasga sobre o pranto” (e firma na ilha) “o grito da imanência”:

Em ti me projecto
para decifrar do sonho
o começo e a consequência
Em ti me firmo
para rasgar sobre o pranto
o grito da imanência.
(Ilha)

O que se lê, como afirma Inocência Mata no ensaio A poesia de Conceição Lima: o sentido da história das ruminações afectivas é “uma dinâmica temporal em dois movimentos: o passado e o presente em atividade rememorativa (...) pelos trilhos de uma linguagem testamentária” *. Testamentária e afetiva, rememorativa e histórica, Lima traça novo percurso nas artes literárias de São Tomé e Príncipe, um percurso que possui uma força narrativa e psicológica, e, parafraseando Bhabha*, uma poética em que a ambivalência da “nação”, ou do sentimento íntimo em relação à Casa, surge como estratégia narrativa.
Na maioria dos poemas de O útero da casa o que se percebe é um desejo (personificado, algumas vezes, em homens ou ossos de homens mortos) que paira sobre a paisagem insular e decifra-se sob a pela delgada das palavras poéticas, que dão vida à casa – muito embora uma casa diáfana, obscura, por vezes –, dão vida, pois, ao início de tudo, de toda a vida e da esperança: ao útero.

De novo as nuvens
cobrirão o pico
e os homens marcharão sobre a planície.
(Segunda revolta de Amador)


Observa-se que desejo de liberdade de Amador não se concretiza e o eu-lírico se defronta (ou poderia dizer confronta-se?) com a utopia desfeita, a verdade da juventude, unida à inocência e ao sonho de que tudo se pode realizar quando se é jovem:

Diz que éramos inocentes, invencíveis
e adormecíamos sem remorsos sem presságios
(...)

Oh, sim! Éramos jovens, terríveis
mas aqui – nunca o esqueças – tudo aconteceu
nos mastros do poema.
(1975)

Assim, a verdade do passado, bem como os sonhos dos jovens, destroçam-se e se tornam nostálgicos (“aqui tudo aconteceu / nos mastros do poema), objeto de elaboração poética – e íntima. O desejo não satisfeito de uma nação liberta, aos moldes das aspirações do eu-lírico, que atua como uma voz para a qual convergem os sonhos do povo, é uma verdade que se coloca diante do mesmo, nua e dolorosa, como se pode observar em Sabemos agora, poema em cuja essência vê-se expressa a condição presente da terra e os resultados não satisfeitos das lutas dos homens sonhadores de outrora (“diz que éramos inocentes, terríveis”), certeza marcada pelo verbo saber no presente do indicativo, na primeira pessoa do plural:

Sabemos agora que a Praça é minúscula
A extensão da nossa espera
Nunca coube em tais limites.
(Sabemos agora, grifo meu)


Sobre a verdade, Clarice Lispector tece uma reflexão em A paixão segundo GH* que considero pertinente mencionar e comparar à entrega aflita e amorosa que se pode perceber no conjunto de poemas que compõe O útero da casa:

Por enquanto estou inventando a tua presença, como um dia não saberei me arriscar a morrer sozinha, morrer é do maior risco, não saberei passar para a morte e por o primeiro pé na primeira ausência de mim. (...)
Mas é que a verdade nunca me fez sentido. A verdade não me faz sentido! É por isso que eu a temia e a temo. Desamparada eu te entrego tudo – para que faças disso uma coisa alegre. Por te falar eu te assustei e te perderei? mas se eu não falar eu me perderei, e por me perder eu te perderia.
(Grifos meus)

Clarice Lispector (1925-1977) é escritora brasileira que, no campo da prosa, apresenta suas indagações e suas dúvidas acerca do Ser. A relação entre Lima e Lispector não ocorre, pois, no campo do gênero. Para a poeta santomense, a diferença está na maneira de apresentar as indagações e dúvidas, o que lhe permite ultrapassar as restrições puramente ideológicas da poesia engajada, tão conhecida no contexto das lutas anticoloniais na África. Assim, Lima estrutura um ambiente lírico, mas não menos crítico; idealizado, mas não menos atento às tramas da realidade política do país, como se pode observar em Roça, poema em que dá voz aos contratados das roças e questiona, pela boca do eu-lírico:

Perguntam os mortos:

Porque brotam raízes dos nossos pés?

Porque teimam em sangrar
em nossas unhas
as pétalas dos cacaueiros?

que reino foi esse que plantámos?

Num contexto diferente, Clarice Lispector empreende, a partir de GH, uma viagem interior sobre o amor, as relações de afeto e todas as consequências de estar em uma relação amorosa. Analogamente, o eu-lírico de Conceição Lima olha para dentro de si mesmo e encontra a poeta que busca re-encontrar sua identidade na terra que a gerou. Ele o faz com um status de quem reflete acerca de uma relação amorosa, representando a Mátria como um corpo a habitar:

(...)
Um degrau de basalto emerge do mar
e na dança das trepadeiras reabito
o teu corpo
templo mátrio
meu castelo melancólico de tábuas rijas e de prumos.
(Mátria)

O maior risco, como afirma GH, é o de morrer sozinha, não conseguir reconhecer-se e perder-se. A questão do pertencimento, que exigiria um tempo maior de discussão, coloca-se na poética de O útero da casa, e, por saber que a busca do pertencimento oblitera os caminhos de construção identitária, Conceição Lima negocia os limites do seu “ser santomense”, nostálgico, com a sua própria experiência diaspórica (pois viveu em Londres), o que a faz (parafraseando Zygmunt Bauman ao discutir questões acerca de cultura, pertencimento e construção identitária) ter um olhar privilegiado acerca de sua terra, entre a intimidade e a distância. Contudo, Conceição Lima constrói o seu castelo com tábuas rijas, firmes, embora melancólico, e não apenas busca “pertencer” à terra em que nasceu, mas compreendê-la, desvendá-la e “reabitá-la”. Como afirma Bauman em entrevista a Benedetto Vecchi,


(...) o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e (tornamo-nos conscientes) de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade”. Em outras palavras, a ideia de “ter uma identidade” não vai ocorrer às pessoas enquanto o “pertencimento”, continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa. (Identidade, meus grifos)

Por isso, por não fazer parte de um grupo restrito de pessoas que estão fora de um contato íntimo com a terra, Conceição Lima é a poeta que está mais próxima de, ao mesmo tempo em que, aludindo ao que propõe Inocência Mata no prefácio a O útero da casa, constrói o relato de uma geração, convoca e re-elabora, em alguns poemas, uma possibilidade de reconstrução identitária, coletiva e individual santomense através de lugares metonímicos como a terra e a casa:

(...)
Quando à casa regressar
A pátria fugitiva

Da trouxa dos dias guardarei ainda
O murmúrio das preces e a vigília
A obstinada memória das águas eternas.
(Poema, grifos meus)


Ou, como em Afroinsularidade, de maneira mais ampla, o eu-lírico pensa em sua identidade amalgamada às ilhas e ao continente, e o contar dessa história individual não deixa de envolver todo “o árduo contar da própria coletividade”:

Às vezes penso em suas lívidas ossadas
seus cabelos podres na orla do mar
Aqui, neste fragmento de África
onde, virado para o Sul,
um verbo amanhece alto
como uma dolorosa bandeira.

Desamparado ou por vezes para “exorcizar demônios”*, no útero da casa o eu-lírico se sente aconchegado e entrega-se, não sem uma certa nostalgia e alguma dor; vislumbra, em constante busca, um caminho que seja transformado em prazer (“coisa alegre”), retomando a alusão ao desejo da amante G.H., personagem clariceana. Entrega-se à Casa, pois. E ampliando-a, eliminando qualquer barreira:


(...)
Enorme era a janela e de vidro
que a sala exigia um certo ar de praça.
o quintal era plano, redondo
sem trancas nos caminhos.
(A casa, grifos meus)

Complementa Inocência Mata:

(...) subsiste (a par de um olhar de apetência epopeica) outra cadência mais intimista, em que se mesclam vozes de felicidade que intentam reverter a apetência para a nostalgia regressiva, e, em que perpassam paisagens visando neutralizar a nostalgia do tempo de ilusão. (...)
Pela rememoração ou reinvenção de lugares felizes são convocados valores que se pretendem perenes e condizentes com o bem-estar societário.

Desta maneira, o olhar para a nação e a tentativa de reinventar lugares, neutralizar a nostalgia e de , enfim, recontar a história a partir de desejos e memórias afetivas e traços que confluem para um olhar feminino, transforma a perda temporária da Casa numa linguagem metafórica, “que transporta o significado de casa e de sentir-se em casa (...) através daquelas distâncias e diferenças culturais que transpõem a comunidade imaginada do povo-nação”.* Ademais, o eu lírico quer-se lúcido caso consiga transportar-se para o útero, para a casa ou Mátria:

Quero-me desperta
se ao útero da casa retorno
para tactear a diurna penumbra
das paredes
na pele dos dedos reviver a maciez
dos dias subterrâneos
os momentos idos

Creio nesta amplidão
de praia talvez ou de deserto
creio na insónia que verga
este teatro de sombras

E se me interrogo
é para te explicar...

Para além de uma tentativa de pensar a identidade nacional, desejo levantar uma tese e algumas hipóteses – que não serão devidamente desenvolvidas agora, porque demandam pesquisa mais cuidadosa – a fim de concluir: pode-se afirmar, nessa obra, o objetivo de construção da nação, ou, novamente, pensar a identidade sob uma nova perspectiva, a do feminino.
Os livros de Conceição Lima aludem a este aspecto, pois seus títulos evocam explicitamente o mundo que a cultura patriarcal tem estabelecido  para as mulheres: casa, útero, dor (parto) etc. Por hipótese, haveria na obra da poeta a possibilidade de mudar o ponto de observação da identidade santomense, pois que possui um olhar mais sensível e íntimo do que descritivo sobre sua Casa? Cobra-se, indiretamente, neste caso, uma escuta à voz das mulheres, mesmo que Lima tenha sido precedida por outras “vozes” femininas como as de Alda Espírito Santo e Manuela Margarido. Critica-se, portanto, de maneira sutil, a preponderância do olhar masculino na experiência social e estética das ilhas?
Homi Bhabha, ao analisar os escritos políticos de Julia Kristeva, sugere que

...ela parece argumentar que a “singularidade” da mulher – sua representação como fragmentação e pulsão – produz uma dissidência e um distanciamento dentro do próprio vínculo simbólico que mistifica “a comunidade da linguagem como um instrumento universal e unificador, que totaliza e iguala”.*


Acredito que certa singularidade, como por exemplo, na escolha do léxico, da obra de Conceição Lima represente um acréscimo – para alterar o “rumo” do olhar – à cultura da nação santomense, e que ela desmistifica o discurso histórico nacional, transformando a nação, a cultura ou a identidade em sujeitos de um discurso que parte do ponto de vista da mulher e passa a ser, aludindo a Kristeva, um “objeto de identificação psíquica”, já que a poeta mergulha em sua nação-Casa, em suas rememorações, partindo da hipótese de um retorno ao útero. Sua poética poderia ser encarada como a elaboração da dificuldade (ou da impossibilidade) de renascer na Casa, para tatear a “diurna penumbra / das paredes / na pele dos dedos reviver a maciez / dos dias subterrâneos os momentos idos”.

E quando te perguntarem
responderás que aqui nada aconteceu
Senão na euforia do poema.
(1975, grifos meus)




Parece-me que algo novo está acontecendo na literatura santomense, que nova(s) voz(es) se levanta(m), brotadas do solo de vozes que antes se fizeram ouvir – como a de Marcelo da Veiga, Francisco José Tenreiro, Manuela Margarido, Alda Espírito Santo –, abrindo as veredas para uma poeta como Conceição Lima fazer literatura.




* BHABHA, Homi. “DissemiNação. O tempo, a narrativa e as imagens da nação moderna.” In O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998. Pp. 198-238.
* Adoto os termos santomense, e não são-tomense, e santomensidade em virtude de minha leitura e adoção do termo na obra de Francisco Costa Alegre, intitulada Santomensidade.
* BHABHA, Homi K. “De margens e minorias”. Idem. p. 215.
* MATA, Inocência. “A poesia de Conceição Lima: o sentido da história das ruminações afetivas”. In Polifonias insulares. Cultura e literatura de São Tomé e Príncipe. Colibri: Lisboa, 2010. Pp. 201-216.
*            BHABHA, Homi. Idem, ibidem. pp. 198-238.
*            LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p.25
*            Massaud Moisés: “As palavras do poema constituem uma espécie de exorcismo do demônio”. Apud MATA, Inocência. Polifonias insulares. p. 201.
*            BHABHA, Homi K. Idem, ibidem. p. 199.
*            KRISTEVA, Julia. “Women’s time”, p. 210. Apud BHABHA, Homi K. Idem. p. 210.

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