quarta-feira, 8 de junho de 2011

Visita à UNEAS - União Nacional de Artistas e Escritores de São Tomé e Príncipe

Em novembro de 2009 – eu havia acabado de chegar em São Tomé e Príncipe (chegara em setembro de 2009) –, fui à UNEAS visitar a poetisa Alda Espírito Santo. Mas, principalmente, fui ouvi-la. Antes de partir do Brasil para as terras de cá, havia lido, numa coletânea, poucos poemas de poucos são-tomenses, quais sejam, Caetano Costa Alegre (1864 1890), –  um estranho salto se fez sobre os textos de Marcelo da Veiga (1892-1976), poeta nascido na Ilha do Príncipe, que vim a conhecer aqui, e que é considerado por alguns críticos o primeiro poeta “negrista” da literatura africana de língua portuguesa –, Francisco José Tenreiro (1921-1963), Manuela Margarido (1926-2007), Tomás Medeiros (1931-), Alda Espírito Santo (1926-2010) e Conceição Lima (1962-) (In APA, Livia et alii. Poesia africana de língua portuguesa. Antologia. Rio de Janeiro: Lacerda, 2003).
Figuravam ali, vivos, os textos de Alda Espírito Santo. Para mim, que estava iniciando a vida em ST&P e moldando os aspectos de minha missão – que é a primeira missão brasileira (MRE do Brasil/DPLP) dessa natureza  no Instituto Superior Politécnico de ST&P –, aquele dia seria muito importante. Era dia de ouvir a poetisa. A poetisa mais querida dos de cá, a mais famosa, a mais participativa nos movimentos pela independência de São Tomé e Príncipe.
Alda Espírito Santo veio apoiada nos braços de um rapaz que trabalhava com ela na UNEAS. Já muito fraca, assentou-se à mesa comigo e com a representante da Embaixada do Brasil, e falou. Falou, sim, falou um pouco da sua vida e da sua luta. Falou do esquecimento, por parte das autoridades locais, daquela casa que sedia a UNEAS (até hoje), falou do concurso anual de paços, da falta de verbas para o mesmo, do carinho que tinha pelos paços, que eram espalhados pela cidade numa determinada época do ano. Mostrou-nos publicações da UNEAS, mostrou-nos seus livrinhos. Mostrou-nos a casa velha. E a bibliotecazinha, que era mesmo naquela sala em que estávamos, ternamente simples, como o foram todos os minutos que passamos ali.
Despedimo-nos, e lembrei-me, já fora da casa, de que eu, que fora até lá cheia de perguntas, de dúvidas, de teorias, eu não dissera uma palavra sequer. O que me tomava era um sentimento de tristeza, de abandono, de frustração. O que me invadia era o passado da mulher guerreira esquecido entre as paredes velhas daquela casa.
Hoje, lembro-me desse encontro com alguma ternura e com uma ponta de frustração. No meu imaginário – ingênuo – um poeta é uma pessoa que deve ser tratada como um pequeno tesouro, ainda mais no caso de Alda, que estava ali, viva, concreta. Construindo pequenos paços...
Já em 2011, recebi de presente de um amigo a primeira edição de É nosso o solo sagrado da terra, de Alda Espírito Santo, cujo subtítulo é “Poesia de protesto e luta”. A edição é de 1978 e traz, na abertura, o Hino de São Tomé e Príncipe, composto por ela, e um prefácio extenso, em que a própria poetisa justifica e explica os poemas que foram selecionados para aquela edição. Admito que fiquei surpresa ao ler o prefácio, pois ele instaura em mim um paradoxo, se comparado à imagem de abandono que presenciei na UNEAS, 31 anos depois de o livro ter sido publicado (pelas Edições Ulmeiro, na Coleção Vozes da Ilha, em Lisboa). Um paradoxo pois, se as palavras não mentem, a mulher que “fala” no prefácio não vem fraca e nem tampouco apoiada em qualquer coisa que seja. A mulher que ali “fala”, fala forte e não pede sustentação para uma casa: ela é os pilares da casa.
Talvez eu esteja repetindo o que muitos já disseram. Acredito que sim, que me alongo e que repito o já dito. Contudo, é por acreditar que, de fato, as escritas servem-se de um compromisso ético e de dignidade, é por acreditar nelas e me comprometer com elas que gloso pela milésima vez o mote da UNEAS. E exponho a minha frustração daquele dia da visita.
No entanto, as escritas se mantêm vivas, como já dizia o sábio ditado latino: verba volat, scripta manent. Sim, a escrita se mantém, permanece, e é documento, no caso de Alda Espírito Santo, de luta e de protesto.
Eu não me arriscarei a uma aventura pela questão literária, pelas questões inesgotáveis acerca do que é literatura, do que é poesia, ou o que faz com que este ou aquele texto seja de fato literário e outro não. Este não é o caso de agora. O caso é que me imbuí de tamanha vontade de “falar”, tocada pela ternura-dura das palavras (certeiras) do prefácio de É nosso o solo sagrado da terra, que deixei de lado as teorias da literatura para falar de algo mais subjetivo, que foi a recepção do tal prefácio. Para falar do amor que tenho pelas letras, pelas palavras, e da admiração que tenho pelas pessoas que lutam com palavras (muito embora saibamos que “lutar com palavras é a luta mais vã”[1], neste e noutro sentido). Para expor a minha indignação que respeita àquela Casa que visitei em 2009. E que continua igual, dois anos mais abandonada, sem a sua viga de sustentação que era Alda. O que valorizo, agora, é a mulher Alda Espírito Santo, cidadã são-tomense.
Assisti há pouco tempo na Biblioteca Nacional a uma homenagem ao octogésimo quinto aniversário da poetisa. A homenagem é merecida (sempre). Mas, quanto aos desejos da homenageada, não os tenho reconhecido nas oportunidades de discussão com alunos, por exemplo, transformados em atos. As palavras de Alda reclamam o resguardo de uma “identidade cultural, compromisso com a luta dos povos oprimidos no mundo, testemunho e militância no continente africano, luta e ação mobilizante na epopéia sangrenta de cinco séculos de estagnação...”[2] Isso tudo pode parecer, a priori, muito ultrapassado. Como falar de luta de povos oprimidos em uma país independente? Como falar de opressão num país de pessoas livres? Creio que Alda estivesse nos exortando a mais que isso: ao compromisso de manter acesos os valores pelos quais ela lutava: liberdade, dignidade, movimento. Ao compromisso de validar o possessivo do título de seu livro: nosso. Ela clama pelo movimento, ao invés da estagnação. Tudo isso pode continuar parecendo ultrapassado.
A manutenção das raízes de sua terra eram-lhe preocupantes: firmá-las, fixá-las era, para Alda, um dever. E ela cria que, mesmo com as dimensões reduzidas de seu país, era possível construir e manter uma nação livre, democrática.
Sei que é complicado para mim, uma estrangeira, falar do Outro. Mas é com o olhar muito terno e não menos crítico que escrevo/falo sobre São Tomé. E falo também como uma pessoa que escolheu viver aqui. No Brasil, entramos há alguns anos numa fase de valorização da nossa cultura, da nossa História e das nossas artes, que é dos elementos mais evidentes que nos sustentam e nos fazem fortes. Eu desejaria ver aqui a mesma valorização que “sinto” lá. Como professora, como estudante das artes literárias, como cidadã, comprometida com o mundo em que vivo (e meu mundo não é apenas o Brasil), espero presenciar aqui, nos próximos meses em que estarei em missão, esta valorização, o desejo dos cidadãos de (a)firmarem suas raízes nesta pequena ilha africana, e de reconhecer, em São Tomé e Príncipe, um país terno e grande, a despeito dos limites do mar, ciente de seus méritos e de suas idiossincrasias, ético para lidar com o que os faz diferentes e com o que os aproxima do resto do mundo.
No caso do Brasil, a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, aprendemos a “olhar” e a “comer”[3] as diferenças que havia entre nosso país e a Europa, diferenciamo-nos pela língua (falamos brasileiro), “coadjuvamos”[4] com os movimentos vanguardistas e modernistas europeus, enfim,  criamos (e alimentamos) um povo ciente de suas raízes mestiças, absolutamente novo no mundo.
A grandeza de que falo só é possível, ao meu olhar estrangeiro, se se dá à manifestação cultural o valor que lhe é de direito. A valorização, para mim, passa necessariamente pela base da pirâmide social: a sala de aula, as aulas de literatura do curso de Letras do ISP, e cresce pelas cabeças que, sem demagogia, representam espíritos “vestidos” de sinceridade e de dignidade. E, por que não, de orgulho?
Dessas cabeças, há algumas aqui. Mas julgo que seja necessário lembrar-lhes sempre de “vencer o medo da escravidão/e a escravidão do medo”.
Conceição Lima, poetisa são-tomense, em alguns fragmentos poéticos colhidos em livro que já citei no início do texto, canta:

Após o ardor da conquista
não caíram manás sobre os nossos campos

E na dura travessia do deserto
aprendemos que a terra prometida é aqui.

Ainda aqui e sempre aqui.
Duas ilhas a desbravar.
O padrão a ser erguido
pela nudez insepulta dos nossos punhos.

Emergiremos do canto
como do chão emerge o milho jovem
e nus, inteiros recuperaremos
a transparência do tempo inicial
Puros reabitaremos o poema e a claridade
para que a palavra amanheça e o sonho não se perca.
(Os grifos são meus)

Se já posso me inserir no contexto santomense, por vivê-lo de forma intensa e por estar verdadeiramente devotada à minha missão, digo: reabitemos, pois, a Palavra que nos pertence. Ergamos o padrão. Comecemos pela UNEAS,  re-habitando as paredes ora tristes, habitando a casa de ideias, desabandonando-a. Eu desejo ver  esta pátria “caminhando na dianteira”[5]. E uno as minhas mãos às “mãos milenárias” de Alda Espírito Santo.

(07 de junho de 2011)


[1] Alusão à poesia de Carlos Drummond de Andrade “O lutador”. Pode se lida em suas Obras completas.
[2] ESPÍRITO SANTO, Alda. É nosso o solo sagrado da terra. Lisboa: Ulmeiro, 1978. p.10.
[3] Faço alusão ao Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, datado de maio de 1928.
[4] “Antigamente imitávamos a literatura francesa com uma distância de mais ou menos duas gerações. Agora estamos com o presente da literatura universal. Não é mais seguir. É ir junto. Não é imitar. É coadjuvar.” (Mário de Andrade, no prefácio de O homem e a morte, de Menotti del Picchia)
[5] Idem. Ibidem. p. 23. Alusão à poesia.

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