“O compromisso com a teoria”*
Existe
uma pressuposição prejudicial e autodestrutiva de que a teoria é
necessariamente a linguagem de elite dos que são privilegiados social e
culturalmente. Diz-se que o lugar do critico acadêmico é inevitavelmente dentro
dos arquivos eurocêntricos de um ocidente imperialista ou neocolonial. Os
domínios olímpicos do que é erroneamente rotulado como “teoria pura” são tidos
como eternamente isolados das exigências e tragédias históricas dos condenados
da terra. Será preciso sempre polarizar para polemizar? Estaremos presos a uma
política de combate onde a representação de antagonismos sociais e contradições
históricas não podem tomar outra forma senão a do binarismo teoria versus política? Pode a meta da
liberdade de conhecimento ser a simples inversão da relação opressor e
oprimido, centro e periferia, imagem negativa e imagem positiva? Será que nossa
única saída de tal dualismo é a adoção de uma oposicionalidade implacável ou a
invenção de um contra-mito originário da pureza radical? Deverá o projeto de
nossa estética liberacionista ser para sempre parte de uma visão totalizante do
Ser e da História que tenta transcender as contradições e a ambivalência que
constituem a própria estrutura da subjetividade humana e seus sistemas de
representação cultural?
Entre
o que é representado como “furto” e distorção da “metateorização” europeia e a
experiência radical, engajada, ativista da criatividade do Terceiro Mundo**,
pode-se ver uma imagem especular (embora invertida em conteúdo e intenção)
daquela polaridade a-histórica do século dezenove entre Oriente e Ocidente que,
em nome do progresso, desencadeou as ideologias imperialistas, de caráter
excludente, do eu e do outro. Desta vez, o termo “teoria crítica”, geralmente
não teorizado nem discutido, é definitivamente o Outro, uma alteridade que é
insistentemente identificada com as divagações do crítico eurocêntrico
despolitizado. (...)
Antes
que eu seja acusado de volutarismo burguês, pragmatismo liberal, pluralismo
academicista e de todos os demais “ismos” sacados a torto e a direito por
aqueles que se opõem de forma mais severa ao teoricismo “eurocêntrico” (derridianismo, lacanianismo,
pós-estruturalismo...) gostaria de esclarecer os objetivos de minhas questões
iniciais. Estou convencido de que, na linguagem da economia política, é
legítimo representar as relações de exploração e dominação na divisão
discursiva entre Primeiro e Terceiro Mundo, entre Norte e Sul. Apesar das
alegações de uma retórica espúria de “internacionalismo” por parte da
multinacionais estabelecidas e rede de indústrias da tecnologia de novas
comunicações, as circulações de signos e bens que existem ficam presas nos
circuitos viciosos do superávit que ligam o capital do Primeiro Mundo ao
mercado de trabalho do Terceiro Mundo através das cadeias da divisão
internacional do trabalho e das diversas classes nacionais de intermediários.
Gayatri Spivak está certa ao concluir que é “para o bem do capital preservar o
teatro dos intermediários em um estado de legislação trabalhista e
regulamentação ambiental relativamente primitivas”.***
(...)
O
que exige maior discussão é se as “novas” linguagens da crítica teórica
(semiótica, pós-estruturalista, desconstrucionista e as demais) simplesmente
refletem aquelas divisões geopolíticas e suas esferas de influência. Serão os
interesses da teoria “ocidental” necessariamente coniventes com o papel
hegemônico do Ocidente como bloco de poder? Não passará a linguagem da teoria
de mais um estratagema da elite ocidental culturalmente privilegiada para
produzir um discurso do Outro que reforça sua própria equação
conhecimento-poder?
*BHABHA, Homi K. “O compromisso
com a teoria”. In: O local da cultura.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. pp. 43-5. (Sugiro a leitura do texto na
íntegra).
Notas no texto de Bhabha:
**Para um exemplo desse estilo de
argumentação conferir: TAYLOR, C. Eurocentrics vs new thought at Edinburgh. Framework, v.34, 1897. Ver especialmente
a nota 1, p. 148, para uma exposição do uso que ele faz do termo “roubo” [larceny] – “a distorção judiciosa de
verdades africanas para ajustá-las aos preconceitos ocidentais.”
***SPIVAK,
G. C. In other worlds. London: Methuen, 1987.
pp. 166-7.
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