Não pode dizer-se de língua alguma que ela é uma invenção do povo
que a fala. O contrário seria mais exato. É ela que o inventa. A língua
portuguesa é menos a língua que os portugueses falam do que a voz que fala os portugueses. Enquanto realidade
presente ela é ao mesmo tempo histórica, contingente, herdada, em permanente
transformação e trans-história, praticamente intemporal. Se a escutássemos bem,
ouviríamos nela os rumores originários da longínqua fonte sânscrita, os mais
próximos da Grécia e os familiares de Roma. Juntemos-lhe algumas vozes
bárbaras das muitas que assolaram
a antiga Lusitânia romanizada, uns pós de arábica língua, que espanta não
tenham sido mais densos, e teremos o que chamamos, com apaixonada expressão, “o
tesouro do luso”.
Na nossa Idade Média, o estatuto da língua era, como o das outras
falas cristãs, um “falar” sem transcendência particular. Com o Renascimento,
abertura sobre o universal segundo o modelo greco-latino, os “falares” europeus
tornam-se paradoxalmente “línguas”. E cada língua signo privilegiado da
identidade. Nascem os discursos hagiográficos da língua nacional, da bela
língua italiana para Bembo, da altiva fala castelhana para Nebrija, da clara
língua francesa para Du Bellay, da nossa nobre e suave língua portuguesa, a de
Fernão de Oveira, de Barros, de António Ferreira, que a convertem em objeto de
culto e orgulho. Diz-me que língua falas, dir-te-ei o estatuto que tens. Nenhum
destes endeusamentos ou apologia da dignidade das línguas nacionais é inocente.
Fazem parte do processo histórico em que culmina o sentimento nacional.
Descobre-se que a língua não é um instrumento neutro, um fator contingente de
comunicação entre os homens, mas a expressão de sua diferença. Mais do que um
patrimônio, a língua é uma “pátria”. Ainda vem longe o tempo em que para cada
uma das línguas dominantes da cultura européia se torne também claro que uma
língua não é um dom do céu, prometido à vida eterna, mas um tesouro que deve
ser defendido da usura do tempo e das pretensões das outras a ocupar os espaços
sem defesa.
A língua é uma manifestação da vida e como ela em perpétua
metamorfose. Não há expressão mais melancólica do que a tão comum e tão pouco
meditada de “língua morta” nem maravilha maior do que a sua ocasional
ressurreição. Como o universo, uma língua viva deve estar em perpétua expansão,
ao menos no seu espaço interior, sob pena de se tornar, ainda em vida, “língua
morta”. Essa vitalidade não é de mera ordem voluntarista ou do ritualismo
conservador de academias ou profissionais das nobres ciências da gramática ou
da filologia. É sobretudo obra dos que a trabalham ou a sonham como
exploradores de um continente desconhecido: romancistas, dramaturgos, sobretudo
poetas, que não são apenas os que assim se chamam, mas todos os que na
cotidiana vida se inventam sem cessar as expressões de que precisam para não
perderem do tempo que passa, do mundo que se renova e transfigura.
(...)
A celebrada alma portuguesa pelo mundo repartida, de camoniana
evocação, foi, sobretudo, língua deixada pelo mundo. Por benfazejo acaso, os
portugueses, mesmo na sua hora imperial, eram demasiado fracos para “imporem”,
em sentido próprio, a sua língua. Que ela seja hoje a fala de uma
país-continente como o Brasil e a língua oficial de futuras nações como Angola
e Moçambique, que em insólitas paragens onde comerciantes e missionários da
grande época puseram os pés, de Goa a Málaca ou a Timor, que a língua
portuguesa tenha deixado ecos de sua existência, foi mais benevolência dos
deuses e obra do tempo do que resultado de concertada política cultural. Sob
essa forma, um tal projeto seria mesmo anacrônico. Nenhum autor português, nem
nenhum estrangeiro, escreveu acerca de nossa ação uma obra como “a conquista
espiritual do México”, pois não tivemos nenhum México para conquistar e
hispanizar. O derramamento, a expansão, a crioulização da nossa língua foram,
tal como as nossas “conquistas”, obra intermitente de ganância (da terra e do
céu), mais do que premeditada “lusitanização” como nós imaginamos – porventura enganados
– que terá sido a romanização do mundo antigo ou a francização e anglicização
dos impérios Frances e britânico. Quiseram também as circunstâncias – na sua
origem pouco recomendáveis – que a nossa língua européia, em contato com a
africana escrava, se adoçasse, mais do que já é na sua versão caseira, para se
tomar esse ritmo aberto e sensual, indolente, do português do Brasil ou o tom
nostálgico de Cabo Verde.
A miragem imperial dissolveu-se há muito. Da nossa presença no mundo
só a língua do velho recanto galaico-português ficou como elo essencial entre
nós, como povo e como cultura, e as novas nações que do Brasil a Moçambique se
falam e mutuamente se compreendem entre as demais. Uma língua não tem outro
sujeito senão aqueles que a falam, nela se falando. Ninguém é seu
“proprietário”, pois ela não é objeto, mas cada falante é seu guardião, podia
dizer-se a sua vestal, tão frágil coisa é, na perspectiva do tempo, a
misteriosa chama de uma língua. (...) Houve épocas de depressiva configuração
em que não era possível pensar no futuro da nossa plural e una fala portuguesa
sem alguma melancolia. Hoje não temos motivos para imaginar que, em prazo
humanamente concebível, o seu destino seja o dos famosos versos da “Tabacaria”,
de que o tempo apagará o traço e a memória. A pluralizada língua portuguesa tem
o seu lugar entre as mais falados do mundo. Isso não basta para que retiremos
dessa constatação empírica um contentamento, no fundo, sem substância. Se
contentamento é permitido, só pode ser o que resulta do imaginar que esse amplo
manto de uma língua comum, referente de culturas afins ou diversas, é, apesar
ou por causa da sua variedade, aquele espaço ideal onde se comunicam e se
reconhecem na sua particularidade partilhada todos quantos os acasos da história
aproximou. Não seria pequeno milagre num mundo que sonha com a unidade sem
alcançar outra coisa senão o seu doloroso simulacro.
(LOURENÇO, Eduardo. “A chama
plural”. In: A nau de Ícaro e Imagem e
miragem da lusofonia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. pp.120-4)
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