sábado, 22 de junho de 2013

Eduardo Lourenço, em acordos e desacordos. É a vida, é o que nos move!


Não pode dizer-se de língua alguma que ela é uma invenção do povo que a fala. O contrário seria mais exato. É ela que o inventa. A língua portuguesa é menos a língua que os portugueses falam do que a voz que fala os portugueses. Enquanto realidade presente ela é ao mesmo tempo histórica, contingente, herdada, em permanente transformação e trans-história, praticamente intemporal. Se a escutássemos bem, ouviríamos nela os rumores originários da longínqua fonte sânscrita, os mais próximos da Grécia e os familiares de Roma. Juntemos-lhe algumas vozes bárbaras  das muitas que assolaram a antiga Lusitânia romanizada, uns pós de arábica língua, que espanta não tenham sido mais densos, e teremos o que chamamos, com apaixonada expressão, “o tesouro do luso”.
Na nossa Idade Média, o estatuto da língua era, como o das outras falas cristãs, um “falar” sem transcendência particular. Com o Renascimento, abertura sobre o universal segundo o modelo greco-latino, os “falares” europeus tornam-se paradoxalmente “línguas”. E cada língua signo privilegiado da identidade. Nascem os discursos hagiográficos da língua nacional, da bela língua italiana para Bembo, da altiva fala castelhana para Nebrija, da clara língua francesa para Du Bellay, da nossa nobre e suave língua portuguesa, a de Fernão de Oveira, de Barros, de António Ferreira, que a convertem em objeto de culto e orgulho. Diz-me que língua falas, dir-te-ei o estatuto que tens. Nenhum destes endeusamentos ou apologia da dignidade das línguas nacionais é inocente. Fazem parte do processo histórico em que culmina o sentimento nacional. Descobre-se que a língua não é um instrumento neutro, um fator contingente de comunicação entre os homens, mas a expressão de sua diferença. Mais do que um patrimônio, a língua é uma “pátria”. Ainda vem longe o tempo em que para cada uma das línguas dominantes da cultura européia se torne também claro que uma língua não é um dom do céu, prometido à vida eterna, mas um tesouro que deve ser defendido da usura do tempo e das pretensões das outras a ocupar os espaços sem defesa.
A língua é uma manifestação da vida e como ela em perpétua metamorfose. Não há expressão mais melancólica do que a tão comum e tão pouco meditada de “língua morta” nem maravilha maior do que a sua ocasional ressurreição. Como o universo, uma língua viva deve estar em perpétua expansão, ao menos no seu espaço interior, sob pena de se tornar, ainda em vida, “língua morta”. Essa vitalidade não é de mera ordem voluntarista ou do ritualismo conservador de academias ou profissionais das nobres ciências da gramática ou da filologia. É sobretudo obra dos que a trabalham ou a sonham como exploradores de um continente desconhecido: romancistas, dramaturgos, sobretudo poetas, que não são apenas os que assim se chamam, mas todos os que na cotidiana vida se inventam sem cessar as expressões de que precisam para não perderem do tempo que passa, do mundo que se renova e transfigura.
(...)
A celebrada alma portuguesa pelo mundo repartida, de camoniana evocação, foi, sobretudo, língua deixada pelo mundo. Por benfazejo acaso, os portugueses, mesmo na sua hora imperial, eram demasiado fracos para “imporem”, em sentido próprio, a sua língua. Que ela seja hoje a fala de uma país-continente como o Brasil e a língua oficial de futuras nações como Angola e Moçambique, que em insólitas paragens onde comerciantes e missionários da grande época puseram os pés, de Goa a Málaca ou a Timor, que a língua portuguesa tenha deixado ecos de sua existência, foi mais benevolência dos deuses e obra do tempo do que resultado de concertada política cultural. Sob essa forma, um tal projeto seria mesmo anacrônico. Nenhum autor português, nem nenhum estrangeiro, escreveu acerca de nossa ação uma obra como “a conquista espiritual do México”, pois não tivemos nenhum México para conquistar e hispanizar. O derramamento, a expansão, a crioulização da nossa língua foram, tal como as nossas “conquistas”, obra intermitente de ganância (da terra e do céu), mais do que premeditada “lusitanização” como nós imaginamos – porventura enganados – que terá sido a romanização do mundo antigo ou a francização e anglicização dos impérios Frances e britânico. Quiseram também as circunstâncias – na sua origem pouco recomendáveis – que a nossa língua européia, em contato com a africana escrava, se adoçasse, mais do que já é na sua versão caseira, para se tomar esse ritmo aberto e sensual, indolente, do português do Brasil ou o tom nostálgico de Cabo Verde.
A miragem imperial dissolveu-se há muito. Da nossa presença no mundo só a língua do velho recanto galaico-português ficou como elo essencial entre nós, como povo e como cultura, e as novas nações que do Brasil a Moçambique se falam e mutuamente se compreendem entre as demais. Uma língua não tem outro sujeito senão aqueles que a falam, nela se falando. Ninguém é seu “proprietário”, pois ela não é objeto, mas cada falante é seu guardião, podia dizer-se a sua vestal, tão frágil coisa é, na perspectiva do tempo, a misteriosa chama de uma língua. (...) Houve épocas de depressiva configuração em que não era possível pensar no futuro da nossa plural e una fala portuguesa sem alguma melancolia. Hoje não temos motivos para imaginar que, em prazo humanamente concebível, o seu destino seja o dos famosos versos da “Tabacaria”, de que o tempo apagará o traço e a memória. A pluralizada língua portuguesa tem o seu lugar entre as mais falados do mundo. Isso não basta para que retiremos dessa constatação empírica um contentamento, no fundo, sem substância. Se contentamento é permitido, só pode ser o que resulta do imaginar que esse amplo manto de uma língua comum, referente de culturas afins ou diversas, é, apesar ou por causa da sua variedade, aquele espaço ideal onde se comunicam e se reconhecem na sua particularidade partilhada todos quantos os acasos da história aproximou. Não seria pequeno milagre num mundo que sonha com a unidade sem alcançar outra coisa senão o seu doloroso simulacro.

(LOURENÇO, Eduardo. “A chama plural”. In: A nau de Ícaro e Imagem e miragem da lusofonia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. pp.120-4)

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