quinta-feira, 27 de junho de 2013

Lançamento do livlu-nglandji santome-putugêji e meu "discurso"

Na mesa, Naduska Palmeira, Leitora no ISP, Gabriel Antunes, da Universidade de São Paulo, Professor João Pontífice, vice-presidente do ISP, e Tjerk Hagemeijer, da Universidade de Lisboa


É com muita satisfação que lançamos hoje, dia 25 de junho, no ISP, o dicionário livre santome-português / livlu-nglandji santome-putugêji, apoiado pelo Programa de Reforço ao Leitorado Brasileiro. São autores da obra o professor Gabriel Antunes, da USP, e o professor Tjerk Hagemeijer, da UL. Ademais, devemos ressaltar que também são autores todos aqueles que colaboraram com os pesquisadores, enviando suas contribuições, dando entrevistas, discutindo os parâmetros e os paradigmas do dicionário, e todos aqueles que falam, escrevem e escreveram a língua santome.
Para São Tomé, trata-se de um passo imenso para a tão discutida valorização das línguas crioulas faladas nas ilhas – quatro, no total – visto que, desde já, os desejos se fizeram escrita, e esta, como diz o velho ditado latino, permanece. O livro já foi lançado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 19 de junho, em conjunto com a Associação para os Estudos dos Crioulos de base Portuguesa e Espanhola e da Society for Pidgins and Creole Languages, e será lançado na UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira), no Brasil, em 04 de julho. E, ainda, no dia 12 de julho, será lançado na Feira do Livro de São Tomé e Príncipe, em Lisboa.
Agradeço à Embaixada do Brasil pelo apoio, fundamental na compra de alguns exemplares do dicionário para a distribuição gratuita em STP. Agradeço ao professor Gabriel Antunes, que veio lançar a obra conosco, e com os são-tomenses, os mais interessados no assunto. Estendo os agradecimentos ao professor Tjerk Hagemeijer, pela presença nesta sessão e por todo o trabalho realizado.
Gostaria de aproveitar o momento para dirigir algumas palavras aos senhores, de minha inteira responsabilidade, acerca de minha experiência como leitora neste Instituto, já que me despeço do cargo com este evento. Tenho acompanhado ativamente as discussões que se fazem sobre as línguas em STP. No que diz respeito ao santome, já se vê hoje uma atitude acadêmica e política para valorizá-lo, não deixando assim que ele se transforme apenas em memória longínqua.
Começo aludindo a Eduardo Lourenço, intelectual português:
“Uma língua não tem outro sujeito senão aqueles que a falam, nela se falando. Ninguém é seu “proprietário”, pois ela não é objeto, mas cada falante é seu guardião, podia dizer-se a sua vestal, tão frágil coisa é, na perspectiva do tempo, a misteriosa chama de uma língua.”
Quanto à língua portuguesa, ainda vejo a necessidade de se descrever o português são-tomense, que possui variedades enormes, e que passa por estudos iniciais, na UFRJ, por exemplo, afim de se verificar os fatores que promovem essa variação, associada possivelmente à escolaridade (quanto mais escolaridade, mais lusitanizado, e o contrário, mais são-tomense). Tem havido cada vez mais estudos  acerca dessas variações, todas elas legítimas e que precisam ser  valorizadas como tais. Os esforços têm como finalidade a abolição dos discursos acadêmicos e políticos o mote de que “quem fala o padrão, imposto e não adequado ao país, é a elite”, quando em STP não se fala como em Portugal, pensamento que esconde uma realidade muito dura: quem fala uma variante dialetal desse “português mitificado padrão” é e será sempre subalterno, ocupará sempre espaços de menos prestígio social. O problema é que quem fala essa variante dialetal é a maioria da população do país! É necessário, pois, desmistificar a ideia de que existe qualquer português “padrão” (e o que é o padrão?), pois todos nós, falantes da língua, construímos nossos padrões sobre as bases de nossas necessidades de uso. É importante também ressaltar que a norma é essencial para a manutenção da língua e a fala é fundamental para a sua vitalidade. A gramática normativa é o registro da língua, sedimentado, e deve ser estudado. A fala é que dá à língua a sua vitalidade e mobilidade inerentes. Volto a Lourenço:
“A celebrada alma portuguesa pelo mundo repartida, de camoniana evocação, foi, sobretudo, língua deixada pelo mundo. Por benfazejo acaso, os portugueses, mesmo na sua hora imperial, eram demasiado fracos para “imporem”, em sentido próprio, a sua língua. Que ela seja hoje a fala de uma país-continente como o Brasil e a língua oficial de futuras nações como Angola e Moçambique, que em insólitas paragens onde comerciantes e missionários da grande época puseram os pés, de Goa a Málaca ou a Timor, que a língua portuguesa tenha deixado ecos de sua existência, foi mais benevolência dos deuses e obra do tempo do que resultado de concertada política cultural.”
Como acadêmica e membro deste instituto, posso apenas propor que se debata e se aja mais ainda neste sentido de legitimar a língua do “bom povo são-tomense”, como poetou Manuel Bandeira em “Evocação do Recife” sobre a língua brasileira:

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam...

E retomo: é preciso valorizar a língua do povo do sul, do norte, do centro, das roças, pois este mesmo povo, livrando-se do peso de não poder ascender socialmente, porque não fala uma língua de poder, poderá ter sua auto-estima mais elevada e se tornar verdadeiramente independente. Necessária é a apropriação da língua que deverá ser descrita e a consciência das adequações linguísticas aos diversos contextos de comunicação. A fala não pode ser julgada por valores como “inferioridade” ou “superioridade”.
Camões fundamentou uma língua, e nós fizemos brincadeiras com ela, imprimimos modos de falá-la e de formulá-la, até que se tornasse nossa, embora língua sem dono, e língua de todos.
Desfrutemo-la pois, e demos a ela nossos sotaques, nossas variações.

Naduska Palmeira

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